segunda-feira, 19 de agosto de 2013

"É a luta que constitui o amor" | Páginas Azuis | O POVO Online

"É a luta que constitui o amor" | Páginas Azuis | O POVO Online
Cientista político e professor da UFRJ aponta que as manifestações de rua estão num momento intermediário entre a explosão inicial de junho e a constituição de uma nova ordem das coisas
Na avaliação do italiano Giuseppe Cocco, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as manifestações de rua, deflagradas em todo o País a partir de junho, são a primeira greve geral metropolitana. Para entender o argumento, apresentado em palestra no Sindicato dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará (Adufc), em julho, é preciso atentar para o estopim das passeatas. 
Açuladas pelo aumento das passagens nos transportes urbanos, elas acabaram se voltando para outras questões – tanto estruturais quanto conjunturais. A ideia do professor é de que, com a economia muito mais voltada aos serviços que à indústria, o transporte é elemento essencial para estar inserido social, econômica e culturalmente nas cidades. Dentro disso, as manifestações são “a face mais selvagem” dos dois governos Lula. Explodem pelas mãos da nova classe média, que agora exige mais dos governantes, e põem ao PT um problema que a presidente Dilma, segundo Cocco, não tem sabido resolver.

Partindo desse contexto, ele afirma que os protestos questionam nossa democracia, estão num momento de inflexão entre a destruição das velhas ordens e a constituição de uma nova e são uma radicalização democrática, cheia de um dissenso que não deve ser unificado, mas, ao contrário, compreendido.

Cocco analisa os Pontos de Cultura como uma iniciativa importante de auto-organização popular da multidão, afirma que não existe “vandalismo” senão “aquele do poder” e crava: “Essa violência é a construção da paz”.

O POVO - O que as manifestações dizem a respeito da nossa democracia?
Giuseppe Cocco - Podemos abrir a reflexão sobre o tema da democracia em várias direções. Por um lado, a repressão determina uma maior mobilização - inclusive uma mobilização radical. Todas essas manifestações tinham uma participação de jovens mais ou menos determinados ao confronto, claramente inspirados por um certo tipo de exasperação com relação às mudanças, ao fato de que mudanças são colocadas a longo prazo, de que há que esperar, mas também com inspiração pelo que aconteceu nas Revoluções Árabes e em Istambul. E, nessas mobilizações, os setores jovens, desorganizados ou não tradicionais, indo para o enfrentamento e dizendo que isso não é uma verdadeira democracia. O que é verdade. Mesmo que, inicialmente, a maioria dos manifestantes fosse do movimento estudantil, de classe média metropolitana, rapidamente houve uma mobilização de jovens da periferia que também têm acesso à universidade, mas pelas políticas de inclusão do governo (Prouni, Reuni, expansão do ensino técnico...), que entraram nessa brecha criticando a democracia e praticando uma outra democracia. Democracia é essa possibilidade do conflito, do conflito acontecer, de dizer: “Eu quero ir até o estádio. Se o pessoal faz uma barreira para que eu fique a quatro quilômetros para ninguém ver, eu vou fazer de uma maneira que todo mundo veja. Eu quero contestar”. É uma prática da democracia que a preenche com outro conteúdo, onde os conflitos possam acontecer e não sejam governados como eles são governados agora. Porém nossa democracia é bipolar, é uma grande conciliação entre os partidos, uma dinâmica que faz os governos todos iguais com pequenas nuances; por outro lado, a regulação dos pobres continua sendo ultraviolenta, baseada no poder de exceção de uma polícia que pode matar pobre quando quiser. Esse movimento, para além do tipo de política da mobilização, abriu uma brecha, colocando a democracia num terreno mais material e dando novo conteúdo.

OP - Que indícios as manifestações dão do que pode ser essa nova democracia que se almeja?
Cocco - Com certeza, as manifestações que continuam apontam para um outro horizonte, que é de radicalização democrática. A democracia não é a pacificação no sentido do medo e da harmonia como necessário terreno de escamoteamento da luta de classes, da luta entre interesses diferentes. A democracia é o espaço onde essa luta possa acontecer sem que signifique uma violência generalizada ou o retorno ao totalitarismo. O paradoxo da esquerda de poder e de setores da esquerda que achavam que estavam com o movimento foi de dizer que as mobilizações eram fascistas – quando, na verdade, é a postura do estado diante disso. Depois dessa fase formidável de manifestações maciças, o movimento passa por uma fase de difusão, que pode ser um refluxo, como em São Paulo que já não acontece quase mais nada, ou pode ser uma difusão com uma outra respiração, a experimentação de outros movimentos. Para efetivamente essa radicalização democrática passar do momento insurrecional, que é destituinte, ao momento instituinte, ela precisa encontrar espaços, medidas, métricas adequadas.

OP - O senhor acha que estamos nesse estágio?
Cocco - Sim. Estamos nessa inflexão. As ocupações que pipocaram em Câmaras e Assembleias Legislativas são os primeiros momentos nesse sentido. Houve em Porto Alegre, em Belo Horizonte, no Espírito Santo, em Belém. Depois houve uma multiplicação de assembleias populares, plenárias. No Rio de Janeiro, está cheio. Ninguém sabe quantas reuniões estão efetivamente acontecendo. Pode também ser que nessa inflexão o movimento vá se diluindo e refluindo.

OP - Qual a diferença entre essas reuniões agora e as reuniões que sempre aconteceram nas periferias das cidades, com os movimentos sociais?
Cocco - A diferença é enorme. Em primeiro lugar, esse movimento não vem do nada. Há várias gerações de militantes, de organizações que no movimento se juntaram. Mas foi o terreno de uma transformação antropológica que levou muita gente a acreditar nas mobilizações, em si mesmos, no uso das redes. As características são que as mobilizações têm muita gente, quando antes você tinha apenas os segmentos organizados - mesmo das margens como MST, Sem Teto, Terceiro Setor -; eram sempre essas redes que multiplicavam os momentos de resistência, mas não conseguiam massificar. O momento eleitoral partidário, das grandes organizações sindicais, prevalecia com um quadro de desvalorização, cooptação e repressão de mobilizações pequenas. Mesmo as mobilizações descentralizadas, têm hoje 300 ou 400 pessoas. Há uma grande determinação de participação, uma geração completamente nova. Isso significa que a crise da representação não é apenas do governo, mas de todas as formas organizadas. Inclusive MST etc. Não é que sejam contestados diretamente, mas eles ficaram completamente deslocados diante dessa prática.

OP - Então, como conjugar ideias tão antagônicas a respeito, por exemplo, de economia, política, direitos humanos?
Cocco - O verdadeiro problema é que, para lidar com isso ou pensar essa dinâmica do destituinte ao instituinte, é preciso - o que não é fácil, a reação automática dos partidos e do governo é o contrário - renunciar inicialmente a querer conjugar isso. A característica desse movimento de multidão é que ele não se unifica. A verdadeira política adequada diante disso seria se abrir e se deixar atravessar por um movimento de multiplicidade de iniciativa. Nenhum partido, nem de extrema esquerda, teria condição de fazer, porque, por definição, eles têm um modo de funcionamento unificado, sintetizado. Francamente, se eu estivesse no governo, também não saberia como fazer. Mas há horizontes que a gente poderia definir como horizontes possíveis.

OP - Quais?
Cocco - O governo federal, que tem mais condições, poderia, embora já tenha passado o tempo, ter enxergado nesse movimento uma guinada para a esquerda e ter feito uma reforma ministerial que teria sido uma reforma em termos de comunicação, simbólica, mas que marcasse essa abertura. Por exemplo, colocando nos Direitos Humanos uma figura reconhecida por sua história e sua prática, construindo o ministério da Cidade e do Transporte juntos, colocando uma figura reconhecida do movimento da reforma urbana, reorganizando também o ministério da Cultura. Esses três momentos teriam sido fundamentais. O PT não tem essa capacidade, essa lucidez. A presidente Dilma, ainda menos. A coisa curiosa é que o governo Lula teve experiência de política da multidão, da multiplicidade, que foi destruída pela Dilma. Ela não deu a menor bola. Para ela, o problema é a megabarragem. A política dos Pontos de Cultura é o exemplo da política da multidão. Você usa o recurso público, dobrando ele ao reconhecimento das dinâmicas de auto-organização que existem na sociedade.

OP - Qual o lugar da violência e do enfrentamento nas manifestações?
Cocco - A violência é um terreno de organização do poder e organização do poder em torno de algo bem específico que é o medo. Um país como o Brasil não se sustenta sem a produção e reprodução sistemática do medo. O nível de desigualdade, de injustiça, de miséria que caracteriza todas as cidades brasileiras só se sustenta porque o poder é organizado em torno do medo. Não é por acaso que, nas cidades como o Rio de Janeiro, tenha uma tropa de elite que tem como símbolo a caveira, quer dizer, a morte. Essas manifestações tinham patamar diferente, uma determinação de não ser rituais. Um dos mecanismos da massificação foi que, desde o início, elas continham um elemento de radicalidade que implicava no fato de dizer: “Nós não vamos nos manifestar de maneira ritual. Vamos marcar nossa presença inclusive enfrentando as limitações que o estado nos impõe e eventualmente atacando alguns símbolos do poder”. Isso pegou.

OP – Como o senhor entende o que se convencionou chamar de “vandalismo”?
Cocco – Acho que a gente deve desconstruir o termo. Não existe nenhum vandalismo a não ser aquele do poder. Por exemplo, que sentido faz falar de vandalismo em São Paulo depois de tudo o que aconteceu com aquelas centenas de mortos ligados ao enfrentamento entre a PM e os comandos da criminalidade organizada, as chacinas que aconteciam em toda a cidade? O termo vandalismo é a hipocrisia mais total de uma mídia que não se olha no espelho. O vandalismo aqui é uma pura invenção midiática. No Rio de Janeiro, por exemplo, quando a gente fala do que é a gestão (do governador) Sérgio Cabral, (do prefeito) Eduardo Paes e (do ex-prefeito) César Maia, podemos fazer uma lista de 10 ou mais grandes investimentos, cada um deles mais ou menos bilionário, jogados no lixo. Uma ou duas vitrines, um mobiliário urbano quebrado é menos do que nada diante da Cidade da Música, construída por César Maia, que custou pelo menos meio bilhão e está fechada há mais de quatro anos. Está lá, enorme, gigantesca, no meio de um mar de favelas no meio da Barra da Tijuca, perto da Cidade de Deus. Algumas lojas quebradas por aqueles da Cidade de Deus não é nada diante desse meio bilhão que não tem nenhum uso. O Maracanã foi refeito em 2007, refeito agora e, depois da Copa do Mundo, será refeito de novo para a Olimpíada. É uma festa vandálica. Os vândalos estão no poder. Foram os garotos que deram a essas manifestações e continuam dando uma característica não ritual ou vazia como de uma procissão, que repete uma liturgia para que os dirigentes continuem nos seus negócios. Isso deu a esse movimento a sua dinâmica e caracterização inovadoras.

OP - Há um investimento dos próprios corpos dos manifestantes no enfrentamento...
Cocco - Sim. Enquanto enfrentam a radicalização da polícia para que a manifestação não seja limitada, ritualizada, esvaziada, defendem a manifestação com o próprio corpo, e a política da multidão aparece como a política dos corpos. Não mais a política dos números das estatísticas eleitorais. Coisa que não entra na cabeça da Dilma e do PT, que continuam a perguntar para os marqueteiros. Esse movimento destrói todas as funções matemáticas e estatísticas usadas pelo marketing, pelos economistas. Porque os corpos não são números. Eles interagem segundo outra dinâmica. Podemos usar a metáfora do amor, o amor que tem nessas lutas. “Existe amor” não é um decreto, mas uma constituição que passa pela luta. É a luta que constitui o amor.

OP - O que a “multidão” ensina para o “povo”?
Cocco - O povo não existe mais enquanto povo, mas enquanto fragmento. O outro lado dessa existência do povo enquanto fragmento - que o Brasil conhece por causa do subdesenvolvimento - reaparece na forma da constituição do fazer-se da multidão. Esse fazer escamoteia a problemática do povo. A multidão não é povo. A violência da multidão é uma violência de resistência e revide. Se, por um lado, tem uma determinação da radicalização para que a manifestação não seja ritual, por outro, o comportamento desse grupo mais radical, muitas vezes da periferia, sem nenhuma centralização, funciona como um enxame. Eles ficam lá, se juntam, se espalham. A prática da violência deles é defensiva.Há imagens incríveis desse enxame de jovens indo para cima com tapumes, barra de ferro, pedras contra o caveirão, até andando em cima do caveirão. Por que podem fazer isso? Esses, que vão para cima, conhecem esse caveirão que mata todo dia na favela. Porque, na avenida, ele tinha condição de fazer isso sem que o caveirão matasse. É um ódio contra a polícia assassina; é também a destruição do medo e a construção de uma verdadeira paz. Não há paz com medo. A paz é dos cidadãos que não têm medo. Essa violência é a construção da paz.

OP - Como o senhor entende a relação entre a crise de representatividade que atinge os partidos políticos e o ódio à imprensa, com carros de reportagens queimados e hostilização a repórteres? As duas coisas fazem parte do mesmo movimento?
Cocco - Em primeiro lugar, a mídia só conseguiu ficar nessas manifestações descaracterizada. Por isso levou muita bala de borracha. Houve muitos jornalistas feridos. A esquerda e o PT diziam que era um movimento manipulado pela grande mídia de direita. Quando os manifestantes atacam a Rede Globo, como aconteceu no Leblon, dizem que são infiltrados, vândalos. Eles choram por causa da campanha midiática do mensalão, mas não conseguem enxergar o fato de que a multidão é profundamente inimiga da mídia e identifica diretamente a mídia com todo o sistema do poder e do estado. Se existe uma recusa dos partidos nessas manifestações, existe um ódio pela polícia, pelo estado, que é equivalente ao ódio pela mídia. A questão dos partidos é porque os movimentos são irrepresentáveis. Se o partido pretende se impor, porque pensa que ele tem uma bandeira limpa como o caso da esquerda de oposição, da extrema esquerda, como o PSTU, ele é visto como uma imposição. Se ele se impõe, é visto ainda pior - como foi o caso dos sindicatos. A recusa das bandeiras de fora não significa recusa de forma de organização e constituição. A fase pela qual passa o movimento nesse momento é o de dizer: “Bom, uma vez que a gente contesta sistematicamente todas as formas de organização, como é que a gente se organiza?”. Ninguém sabe como.

OP - Na época do lançamento de Mundobraz, o senhor afirmou: “A crise está aberta, ela pode ser uma perspectiva de construção de outros valores. Esse horizonte está na possibilidade de construir (...) uma esfera do comum”. As manifestações estão construindo essa esfera do comum?
Cocco - Ainda não. Elas indicam uma esfera que não é bem aquela estatal, nem aquela do mercado. São profundamente antiestatais, contra representação; e profundamente contra o mercado, contra o capitalismo. Esse movimento tira a roupa de todo mundo. Todo mundo fica nu, falando um monte de besteira. Mas acho que indica para esse terreno da constituição do comum. Só o movimento inventa, só a luta ensina. Esse movimento transmuta todos os valores. Antes do movimento, isso que eu dizia passava na indiferença, como um fato folclórico, interessante, no regime da produção artística. Agora dá para dizer: “Está lá”. Mesmo que o movimento possa passar agora por um refluxo total, é um evento único que abre todos os horizontes do possível.
 

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