quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

"O devir-multidão dos excluídos e de todos os que são incluídos somente na extensão necessária para serem explorados". Entrevista especial com Adriano Pilatti

"O devir-multidão dos excluídos e de todos os que são incluídos somente na extensão necessária para serem explorados". Entrevista especial com Adriano Pilatti

“A força desses movimentos não é de caráter militar, é política, e a juventude que os anima precisa entender isso pra valer. Parece que a maioria já entendeu”, avalia o cientista político sobre as manifestações que surpreenderam o Brasil no 2º semestre de 2013.
do site Instituto Humanitas Unisinos – IHU  

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

"A Navalha de Dalí": Dê um rolê: por dentro e contra

"A Navalha de Dalí": Dê um rolê: por dentro e contra
de Murilo Duarate Costa Correa
Arrastão. – Quando Tom Zé publicou sua exegese de Tô ficando atoladinha, a canção-anátema de Tati Quebra-Barraco, as reações dos estetas formais da Moderna Música Popular Brasileira foram agressivas e imediatas. Os adversários de Tom Zé acusavam seu mais recente álbum, Estudando a bossa nova, de conter “injustificáveis influências do funk carioca”. Quando Tom Zé justificou não ver ali nenhuma contradição, pois o funk carioca teria sido “uma das ondas concêntricas desencadeadas pela bossa nova”, as reações foram ainda mais hostis. Era 2008, e o funk abandonava seu círculo tradicional para cair de uma vez por todas no gosto popular.
Enquanto a internet e a democratização da cultura do compartilhamento subiam o morro promovendo novas formas de invenção e acesso à cultura, o “som de preto, de favelado” que “quando toca, ninguém fica parado”, descia e invadia o Rio com a força de um fluxo novo, vencendo as resistências que os sambas de Janet de Almeida – a autora de Eu sambo mesmo e Pra quê discutir com madame? – haviam imortalizado. Mais tarde, na voz de João Gilberto, os sambas de Janet de Almeida, que ridicularizavam a eugenia musical da elite brasileira com ironias tão finas quanto contestatórias, encontrava eu híbrido em ritmo de bossa. Como o DJ Malboro, com seu som de preto e de favelado, não seria uma das vagas desencadeadas pelo samba e pela sua progressiva assimilação social? Tom Zé talvez ignorasse, mas sua exegese de Tô ficando atoladinha foi mais que a protagonista de um mero choque de gosto; foi a exposição radical do preconceito de classe que continua a atravessar a Moderna Música Popular Brasileira e que se dissimula sob o verniz do cultivado.
Quando Tom Zé – o inventor da estética do arrastão em Defeito de Fabricação (1998) – afirmava a congenialidade entre o “metarrefrão microtonal e plurisemiótico” de To ficando atoladinha e a bossa nova, foi como um golpe triplo: (1) denunciar a função política exercida pelo canto gregoriano na naturalização das escalas – que, de microtonais, passavam a ser diatônicas; (2) restaurar a dignidade da escala microtonal, demonizada pela forma estética imposta pela Igreja Católica; (3) atestar, na microtonalidade, a origem comum da bossa nova e do funk carioca. Esse gesto, antiplatônico, desterrava as hierarquias consolidadas; proclamava a verdade demoníaca que o funk só poderia ter herdado, na espiral do tempo, precisamente do que havia de mais refinado e cool na recente história da música popular brasileira: a microtonalidade dissonante da bossa, produto de furto e objeto da reinvenção da estética do arrastão dos pretos e favelados.


Por dentro.O rolezinho está para o shopping center assim como o funk ostentação está para a bossa nova. Dois agenciamentos cujo horizonte de aparição assume a forma efêmera do choque de gosto, mas oculta, sob sua superfície, uma renovada emergência da luta de classes, e ali onde menos se espera: nos modos de consumo da cultura. Tudo se passa sob o signo da contradição e do imaginário dialético: é a ralé do rolê contra os mauricinhos de rolex; as tchutchucas de shortinho e chapinha no cabelo contra a Garota de Ipanema. Porém, em 2013, a filha da Garota de Ipanema dançou o quadradinho de 8Assim como o funk é o filho bastardo da microtonalidade da bossa nova, o rolezinho é o filho monstruoso do shopping center. Congenialidade analógica: talvez não seja por simples acaso que quando pobre resolve dar um rolê, na praia ou no shopping, seu passeio, no léxico do poder, vire logo arrastão – não há outra forma estética possível senão confrontar o legítimo com o bastardo e o doente de normalidade com a força do monstruoso.
Todavia, sob toda equivalência em diagonal (funk/bossa; rolê/shopping), há uma inequação insuspeita. Ela se confunde precisamente com a diferença que ultrapassa os termos “legítimo” e “bastardo”, “normal” e “monstruoso” e, no seio de sua congenialidade, atesta sua diferença recíproca. Basta perguntar a qualquer segurança de shopping, ou policial: há uma diferença entre o maloqueiro e o mauricinho, entre a ralé e o rolex, que é fenomenológica, eugênica – pois a questão racial é flagrante –, mas também política.
Há uma moda mauricinho, uma forma exterior de aparição, uma codificação dos hábitos e dos gestos, como há uma estilização maloqueiro: boné, bermudas enormes, camisa polo, correntes, óculos de sol, celular na mão... sob um choque de gosto, um choque de signos, de regimes de signos incompossíveis para o capital. Na superfície das formas de consumo da cultura, o encontro intensivo entre formas de vida diferentes em um espaço que tem se tornado cada vez mais comum no Brasil: o do consumo e o do valor social do consumo: a ostentação.
A ostentação é o “por dentro” do rolezinho, o gesto de pertença a um mundo que não é o seu – o signo da “invasão” por excelência. Porém, mais a fundo, a ostentação encerra a apropriação de uma forma de relação social mediatizada pelos objetos e sua conversão em mote político. Querer o que os mauricinhos podem ter, com outro corpo, outra pele, outra história e outro modo de existência, revela um potencial de liberação de uma forma desejante que nem pode se realizar no mercado, nem parece – como as liminares judiciais e confrontos policiais recentemente comprovaram – poder ser contida por ele. O mauricinho está curtindo por dentro. O maloqueiro “zoa” no shopping porque está curtindo por dentro e contra.

e contra. – Em uma entrevista no fim de sua vida, Deleuze afirmava que “Direitos Humanos” eram coisa “de intelectuais sem ideias próprias”; que a verdadeira filosofia do direito era a jurisprudência. A afirmação de Deleuze não deveria causar mais espécie do que as práticas estatais de segurança pública e manutenção militar da ordem. Seja como for, procuremos compreender a polêmica – e quase sempre mal-compreendida – afirmação de Deleuze sobre os direitos humanos. O aparente menosprezo de Deleuze pelos direitos humanos não deve ser confundido com sua proscrição ou inutilidade. Está vinculado, antes, à denúncia dos compromissos vergonhosos que se utilizam da forma jurídica para combater precisamente aqueles a quem o direito deveria proteger. Abstrações metafisicas, construídas sobre uma antropologia evanescente como Auschwitz teria comprovado de uma vez por todas, os direitos humanos não podem significar nada senão uma gramática de luta e defesa de direitos, como quisera Douzinas, ou, então, uma retórica de difusão dos valores do Império, como quiseram Negri e Hardt.
Todavia, sobre os direitos humanos, Deleuze não compartilha nem o otimismo vigilante de Douzinas, nem a crítica veraz de Hardt e Negri. O bergsonismo de Deleuze implica que o direito, e uma filosofia do direito, só possam constituir-se em relação com um campo problemático concreto; isto é, em correlação com um universo de singularidades reais contra a qual se debate um povo que se inventa em busca de uma nova terra. Os direitos humanos, abstratos e descarnados, são mesmo, como quisera Deleuze, assunto para “intelectuais sem ideias próprias”. Porém, no terreno singular de lutas em que se constituem e inventam, são produtos de uma filosofia do direito que se confunde com a jurisprudência, constituídos por prolongamentos sutis e embates, procedem por criação.
Sob essa luz, black blocs e os jovens do rolezinho são os maiores filósofos do direito de que o Brasil teve notícia nos últimos anos. Eles inventam direitos, cada um a sua maneira, contra o Estado e contra o mercado, e o fazem concretamente, questionando a repartição entre os ilegalismos lícitos e os ilícitos. Dia 11 de janeiro de 2014, o Shopping JK Iguatemi – um dos mais luxuosos centros comerciais da cidade de São Paulo – obteve uma decisão liminar que impedia a realização de um rolezinho em suas dependências físicas, com apoio não apenas de sua segurança privada, como das polícias Civil e Militar). O conteúdo da decisão liminar, concedida por Alberto Gibin Villela, não é outro, senão o apelo a “direitos fundamentais” vazios e abstratos: “A Constituição Federal estabeleceu direitos fundamentais a todos. Esses direitos importam também em obrigações a cada um, que tem o dever de olhar a sua volta para avaliar se a sua conduta não invade a esfera jurídica alheia. O Estado não pode garantir o direito de manifestações e olvidar-se do direito de propriedade, do livre exercício da profissão e da segurança pública. Todas as garantias tem a mesma importância e relevância social e jurídica. ”
O menosprezo aparente de Deleuze pelos direitos humanos, que não passava de uma recusa a colocar o problema da filosofia do direito à moda tradicional, abstrata, caberia também aqui. Toda a questão da filosofia do direito se esgota na invenção política de direitos, em sua afirmação em tensão com uma singularidade concreta que não pode ser contida nas teorias de direitos fundamentais ou nas colisões de princípios. Com razão, ao mesmo tempo em que Deleuze afirmava que “a jurisprudência é a verdadeira filosofia do direito”, dizia “ela não deveria ser confiada aos juízes”.
Já é tempo de abandonar as concepções ideais sobre o direito e de perceber que as operações jurídicas criam pedaços de real em que podemos viver, circular, consumir, que são interditados e que se transformam em campos de batalha. Toda operação jurídica é – como a liminar do caso JK Iguatemi atesta, apesar de toda a sua obscena atecnica – uma ontologia política que se confunde com a invenção de direitos. O grande direito que está por ser inventado no Brasil contemporâneo, e que é afirmado heterogeneamente nas táticas black blocs e nos rolezinhos, contra o Estado e contra o capital, é o direito ao rolê, à circulação insujeita dos corpos – no espaço público como no privado. Invenção de um Fora do Estado e do mercado que começa a se replicar por todo o país. Invenção política de um outro mundo possível. Se, por ora, não há outro mundo para além ou para fora deste, o rolê é o gesto político contestatório por excelência: por dentro e contra – plano em que a estética quase-oswaldiana do arrastão, de Tom Zé ("Só me interessa o que não é meu"), reencontra a aquela mesma galera que, como na Tropicália, só quer sair, se divertir, dar um rolê. Rolê é amor: da cabeça aos pés. Dê um rolê.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Coralidades e Dissenso: Verbetes Dissenso/Rancière

Coralidades e Dissenso: Verbetes Dissenso/Rancière

Debate sobre o MASP

Estadão  É preciso preservar o Masp
"Triste destino o do vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), instituição que tem um dos mais importantes acervos artísticos da América Latina. Primeiro, tornou-se um símbolo do desrespeito às regras que devem pautar as manifestações públicas. Qualquer grupo que deseja apresentar reivindicações ou protestar se julga no direito de ocupar esse espaço, para nele começar ou terminar manifestações, cujo palco é a Avenida Paulista. Como se isso não bastasse, ele agora virou - no intervalo entre uma manifestação e outra - lugar de reunião de dependentes de droga, com o sério risco de virar uma espécie de minicracolândia"
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,e-preciso-preservar-o-masp-,1098579,0.htm


Por que a ideia do ‘Estadão’ de fechar o vão livre do Masp é estapafúrdia/ Mauro Donato

 A ideia estapafúrdia surgiu num editorial ranzinza e retrógrado do Estadão que, em nome da moral e dos bons costumes, defendeu a instalação de cercas em torno do museu. Segundo o jornal, a situação atual de manifestações e consumo de drogas no local é incompatível com o museu e cabe às administrações responsáveis (prefeitura e MASP) encarar a “nova realidade da cidade”, “cercar o museu” e “recorrer à força policial para colocar cada um no seu devido lugar”.

 

O Masp e a casa da sogra Raquel Rolnik

Há duas semanas o "Estadão" defendeu em seu editorial o cercamento do vão livre do Masp como forma de proteger o museu da ameaça de "viciados", "traficantes", "moradores de rua" e "grupos de manifestantes" que tomaram conta do espaço.
O jornal reverberou declarações do curador do museu, Teixeira Coelho, que, diante da recusa do Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional em aceitar seu pedido de instalação de grades no vão livre, classificou tal posição como "um atraso".
Outra solução levantada pelo editorial seria "uma ação enérgica" da polícia, "para colocar cada um no seu devido lugar", já que o vão livre se tornou "a casa da sogra", "onde qualquer um faz o que bem entende".
Reportagem da Folha da última sexta-feira estampa barracas de camping ocupando o espaço, servindo de moradia a pessoas sem teto, e reitera a imagem de "abandono" do lugar.
Não é à toa que o Masp se tornou um dos símbolos de São Paulo, além de um dos lugares mais apropriados pelos paulistanos. Poucos são os espaços da cidade que estabelecem uma relação tão bem-sucedida entre o público e o privado, a cultura, a arte e a vida cotidiana dos cidadãos.
Na contramão dos equipamentos culturais desenhados para serem monumentos de celebração a uma arte-mercadoria, glamourizada e identificada com as elites, o Masp nasceu para ser uma espécie de antimuseu, radicalmente aberto para a cidade.
Em filme de 1972, Lina Bo Bardi, autora do projeto, fala sobre o Masp: "[...] minha preocupação básica foi a de fazer uma arquitetura feia, uma arquitetura que não fosse uma arquitetura formal, embora tenha ainda, infelizmente, problemas formais. Uma arquitetura ruim e com espaços livres que pudessem ser criados pela coletividade. Assim nasceu o grande belvedere do museu, com a escadinha pequena. A escadinha não é uma escadaria áulica, mas uma escadinha-tribuna que pode ser transformada em um palanque. Eu quis fazer um projeto ruim. Isto é, feio formalmente e arquitetonicamente, mas que fosse um espaço aproveitável, que fosse uma coisa aproveitada pelos homens".
O vão livre do Masp é, portanto, o próprio museu. E os moradores da cidade, celebrando este belo presente, afirmam todos os dias seu caráter público: heterogêneo e múltiplo, ocupado e povoado por todo e qualquer tipo de gente, de evento e de situação, afirmando ali a dimensão pública da arte, da cultura e da cidade.
Se nos choca e indigna ver o vão do Masp (e outros espaços públicos) ocupado por pessoas viciadas em crack e moradores sem teto, é de políticas públicas decentes de saúde mental, de moradia e de assistência social que necessitamos, com urgência.
Não são as grades nem a repressão policial que vão enfrentar a situação de vulnerabilidade em que se encontram muitos paulistanos. Se eles estão ali, expondo a precariedade e a situação limite de sua existência, é porque, simplesmente, não há nada nem ninguém que os acolha, propondo alternativas reais para essa situação.
A imagem das barracas armadas no Masp só afirma a urgência de implementação de políticas que avancem nesta direção. Uma boa gestão de cidade mantém a qualidade de seus espaços públicos cuidando tanto de seu estado físico de conservação quanto da vulnerabilidade de parte de seus cidadãos.
Se o vão livre do Masp tem sido cada vez mais palco de manifestações, é justamente por acolher de forma tão eloquente uma das reivindicações centrais dos protestos recentes: a necessidade de constituição de uma esfera verdadeiramente pública no Brasil.

Empurra-empurra! Sobre a morte das estátuas - Revista Fórum | Revista Fórum

Empurra-empurra! Sobre a morte das estátuas - Revista Fórum | Revista Fórum

07/10/2013 9:22 am Empurra-empurra! Sobre a morte das estátuas


A ação guarani de atacar, ainda que simbolicamente, o Monumento às Bandeiras de São Paulo cumpre o papel de resgatá-lo para o curso da história. E, assim, podemos enxergar as chagas da maldade que representa
Por Guilherme Leite Cunha

As estátuas e os monumentos públicos são, em sua maioria, a realização material de uma ação conservadora: a abstração e fetichização da história. São a negação do processo histórico, de suas lutas e contradições, por parte dos vencedores. Que fincam ali o seu poder em pedra, cimento e granito, com uma dupla função didática: convencer-nos sobre uma suposta irreversibilidade da história e nos educar sobre quem são os vencedores. O “monumento” se configura como um poder final que atua no reconhecimento público do dominador e na naturalização de sua dominação, querendo se configurar como um patrimônio público, total, da nação, dos vencedores, mas também, e fundamentalmente, dos vencidos.
Para essa naturalização é necessária uma identificação afetiva a esses monumentos. Nesse sentido, eles devem ser referência em termos estéticos e de manufatura. E quanto mais referencial a obra for, nesses termos, mais perversa ela é para a cultura dominada. É inegável a existência dessas características ao Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret, que, por seu suposto valor estético intrínseco, foi facilmente interiorizado como patrimônio cultural de todos os paulistas.
Contudo, também é inegável que os bandeirantes, nossos vencedores, são assassinos. Nossos heróis são estupradores. Nossos ídolos são os mais cruéis torturadores, que durante séculos produziram um dos maiores genocídios de nossa história: o massacre de populações inteiras, o extermínio de suas histórias, de suas culturas, de suas vidas, de seus nomes e línguas.

Uma “obra de arte” não pode valer mais que uma gota de sangue. E nesse entendimento reside a chave para compreender o alto grau de inventividade e valor estético-político da intervenção dos Guaranis (Mídia Ninja)

Conquanto, a história não morreu nem “está longe demais”. E talvez os vencidos tenham sobrevivido. Os vencidos vêm sobrevivendo marginalizados nas bordas das cidades, em restos de terra, em pedaços de chão, lutando por um mínimo de vida digna, por demarcação e reconhecimento. E esse reconhecimento passa também pela constatação de quem fez isso com eles, de quem os matou, de quem os proibiu de contar suas histórias, suas ideias e suas realizações.
A ação guarani de atacar, ainda que simbolicamente, o Monumento às Bandeiras da cidade de São Paulo, cumpre o papel de resgatar o monumento novamente para o curso da história. E ao reapresentá-lo ao processo histórico, podemos novamente enxergar nele as chagas da maldade que ele representa.
“Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro.”, atesta Walter Benjamin. E ao realizarem a intervenção na estátua, os indígenas tentam interromper esse processo de transmissão. E interrompendo esse processo, podemos relembrar que uma obra de arte não se encerra somente em seus valores formais, mas fundamentalmente em seus valores culturais, de significação e representação. E, nesses termos, a obra paulista significa e representa a morte e o massacre: sintomas da barbárie moderna que se entende como civilizatória. Desvelados pela tinta guarani, ela nada mais é que um documento de exaltação a essa barbárie, exposta claramente, no vértice de grandes avenidas, da subjugação de negros, índios e mestiços, que, como escravos, trabalham exaustivamente para a glória de seus proprietários.
Inúmeros monumentos nazistas foram derrubados e removidos, assim como célebres estátuas estalinistas. Até mesmo Saddam Husseim teve sua escultura demolida. Todas elas nos lembram de que o curso da história continua, e que nada é intocável e imortal. Assim, da mesma forma, o Monumento às Bandeiras, além de outras obras, como Borba Gato, e todas as outras homenagens aos assassinos bandeirantes devem e precisam ser extintas. Pelo motivo mais simples e civilizatório possível: uma “obra de arte” não pode valer mais que uma gota de sangue. E nesse entendimento reside a chave para compreender o alto grau de inventividade e valor estético-político da intervenção dos Guaranis.
Como sabemos, contudo, nossa tradição é de conciliação e não de rompimentos históricos. A transmissão de um vencedor a outro, em nossas terras, é pautada pelo cinismo de quem sabe que o poder continua nas mesmas mãos há 500 anos. Cabe, pois, a nosso processo civilizatório passarmos de obras de exaltação à barbárie para a construção de memoriais de resistência e de lembrança aos genocídios cometidos. Mais do que isso, passa pela realização de justiça, seja prendendo torturadores ainda vivos, seja derrubando suas estátuas. Passa, por fim, pela realização de justiça, punição e castigo às elites assassinas.
*Guilherme Leite Cunha é mestre em estética e história da arte pela USP

sábado, 4 de janeiro de 2014

Quebrar o feitiço neoliberal: Europa, terreno de luta |

Quebrar o feitiço neoliberal: Europa, terreno de luta |

03/01/2014

Por Sandro Mezzadra e Toni Negri, na Euronômade | Trad. Coletivo VilaVudu

Quem, como nós, não tem interesses eleitorais, está na melhor posição para reconhecer a grande importância que terão em 2014 as eleições ao Parlamento Europeu. É fácil prever que na maior parte dos países implicados haverá alta abstenção e significativa afirmação das forças “eurocéticas”, unindo à retórica da “soberania nacional”, a hostilidade contra o euro e contra os “tecnocratas de Bruxelas”. Para nós, não é nada bom.
Estamos convencidos há tempos de que por baixo do perfil normativo, como por baixo da ação governamental capitalista, há uma Europa cuja integração já ultrapassou o portal do irreversível. O realinhamento geral dos poderes na crise – em torno da centralidade do Banco Central Europeu e o que se define como “federalismo executivo” – modificou sem dúvida a direção do processo de integração, mas não pôs em discussão a continuidade daquele processo. A própria moeda única mostra-se hoje consolidada na perspectiva da união bancária: é necessário responder à violência com que essa união bancária manifesta o mando capitalista; mas volta às moedas nacionais significa não entender qual é o terreno no qual se disputa hoje a luta de classes.
É verdade que a Europa é hoje uma “Europa alemã”, cuja geografia econômica e política vai-se reorganizando em torno de relações concretas de força e de dependência, que se refletem até no nível monetário. Mas só o feitiço neoliberal explica que se confundam a irreversibilidade do processo de integração, de um lado; e de outro a impossibilidade de modificar os conteúdos e as direções; de fazer agitarem-se dentro do espaço europeu a força e a riqueza de uma nova hipótese constituinte.
Quebrar esse feitiço neoliberal significa redescobrir hoje o espaço europeu como espaço de luta, de experimentação e de invenção política. Como terreno sobre o qual a nova composição social dos trabalhadores, das trabalhadoras e dos pobres abrirá talvez uma perspectiva de organização política. Lutando sobre o terreno europeu, uma organização assim terá a possibilidade de golpear diretamente a nova acumulação capitalista. E só no terreno europeu é possível propor tanto a questão do salário como da renda; redefinir os direitos como nova dimensão do Welfare; tanto as transformações constitucionais internas nos países individuais, como a questão constituinte europeia. Hoje, não há realismo político se não nesse terreno.
Parece-nos que as forças de direita compreenderam há tempo que a irreversibilidade da integração assinala hoje o perímetro do que resulta política e praticamente pensável na Europa.
Em torno da hipótese de aprofundamento substancial do neoliberalismo, já se organizou um bloco hegemônico que inclui variantes significativamente heterogêneas (das aberturas não só táticas na direção de uma hipótese socialdemocrata de Angela Merkel, à violenta constrição repressiva e conservadora de Mariano Rajoy). As mesmas forças de direita que se apresentam como “antieuropeias”, pelo menos nos seus componentes mais informados, jogam sua opção sobre o terreno europeu, com vistas a ampliar os espaços de autonomia nacional que estão bem presentes na Constituição Europeia, e recuperando, num plano meramente demagógico, o ressentimento e a fúria disseminados em amplos setores da população, depois de anos de crise.
A referência à nação mostra-se como o que é: transfiguração de um sentido de impotência em agressividade xenófoba; defesa de interesses particulares imaginados como arquitrave de uma “comunidade de destino”. Por outro lado, a esquerda socialista, embora não fazendo parte do bloco hegemônico neoliberal, não consegue diferençar-se eficazmente daquele bloco no momento de elaborar propostas programáticas de signo claramente inovador. A candidatura de Alexis Tsipras, líder do partido Syriza, à presidência da Comissão Europeia, tem importância indubitável nessa ordem de coisas; já determinou em muitos países uma positiva abertura do debate de esquerda. Em outros países, contudo, ainda parecem prevalecer os interesses de pequenos grupos ou “partidos”, incapazes de desenvolver discurso político plenamente europeu.
Com as coisas nesse pé, por que as eleições europeias de maio próximo nos parecem importantes?
Em primeiro lugar, porque tanto o relativo reforço dos poderes do Parlamento, como a designação pelos partidos de um candidato à Presidência da Comissão, fazem da campanha eleitoral, necessariamente, um momento de debate europeu, no qual as diversas forças ficarão obrigadas a definir e anunciar, pelo menos, algum esboço de programa político europeu. Parece-nos pois que aqui se apresenta a ocasião para uma intervenção política dos que se batem para quebrar tanto o feitiço neoliberal como seu corolário, segundo o qual a única oposição possível à atual forma da União Europeia seria o “populismo” antieuropeu.
Não se exclua, de início, que essa intervenção possa encontrar interlocutores entre as forças que se movem no terreno eleitoral. Mas estamos pensando, antes de tudo, numa intervenção de movimento, que consiga deitar raízes no interior das lutas que se desenvolveram nos últimos meses, embora de diferentes maneiras, em muitos países europeus – com intensidade significativa inclusive na Alemanha. É decisivamente importante voltar a habilitar um discurso programático – e isso não é possível exclusivamente dentro e contra o espaço europeu.
Não vemos como se poderia questionar sociologicamente, de modo adequado, a “composição técnica de classe” de um ponto de vista messiânico acima da “composição política” adequada. Do mesmo modo, não haverá movimentos de classe vitoriosos que não tenham interiorizado a dimensão europeia. Não seria a primeira vez, mesmo na história recente das lutas, que esses movimentos ver-se-iam forçados pelo marco político a se modificarem, voltando a experiências locais, até se verem asfixiadas em clausuras sectárias. Trata-se de reconstruir imediatamente um horizonte geral de transformação, de elaborar coletivamente uma nova gramática política e um conjunto de elementos de programa que possam agregar força e poder no interior das lutas. Aqui e agora – repetimos –, a Europa nos parece ser o único espaço no qual isso é possível.
Um ponto nos parece particularmente importante. A violência da crise fará sentir seus efeitos ainda por muito tempo. Não há “recuperação” à vista, se por recuperação se entender diminuição significativa do desemprego, diminuição do precarismo[1] e relativo reequilíbrio dos ganhos. Mesmo assim, parece que se possa descartar o aprofundamento da crise. O acordo sobre o salário mínimo, sobre o qual de fundamenta a nova coalizão na Alemanha, parece indicar, mais, um ponto de mediação no terreno do salário social que pode funcionar – em geometria e geografia variáveis – como critério de referência geral para a definição de um cenário de relativa estabilidade capitalista na Europa.
É um cenário, não a realidade atual, e é um cenário de relativa estabilidade capitalista. Para a força de trabalho e para as formas da cooperação social, esse cenário assume como dados de partida a extensão e a intensificação do precarismo, a mobilidade forçada dentro do espaço europeu e fora dele, o desclassamento de quotas relevantes do trabalho cognitivo e a formação de novas hierarquias dentro do trabalho cognitivo, determinados pela crise.
Mas em geral, o cenário de relativa estabilidade de que falamos constata a plena hegemonia de um capital cujas operações fundamentais têm natureza extrativa, quer dizer: combinam a persistência de uma exploração de tipo tradicional, com intervenções de “subtração” direta da riqueza social (mediante dispositivos financeiros, mas também porque assumem “bens comuns”, como, dentre outros, saúde e educação, como terreno privilegiado de valoração). Não por acaso, os movimentos compreenderam que nesse terreno travam-se as lutas que podem golpear o novo regime de acumulação.
Nesse cenário trata-se, obviamente, de saber perceber a especificidade das lutas que se desenvolvem, de analisar sua heterogeneidade; e de medir sua eficácia em contextos políticos, sociais e territoriais que podem ser muito diferentes.
Mas trata-se também de propor os problemas de tal modo que as lutas possam convergir, multiplicando sua própria potência “local”, mas dentro do marco europeu. Enquanto isso, delinear os novos elementos do programa pode ser feito mediante a escrita coletiva de uma série de princípios dos quais não se pode abrir mão, no terreno do Welfare e do trabalho; da fiscalidade e da mobilidade; das formas de vida e do precarismo, em todos os terrenos sobre os quais se expressaram os movimentos na Europa.
O que estamos pensando não seria uma carta de direitas redigida de baixo para cima que se apresentaria a alguma instância institucional: é, mais, um exercício de definição programática que, como começa a mostrar a “Carta de Lampeduza” essas semanas, no que tenha a ver com migração e asilo, possa converter-se em instrumento de organização no nível europeu. Sem esquecer que, nesse trabalho, podem aparecer impulsos decisivos, mesmo, imediatos, para construírem-se coalizões de forças locais e europeias, sindicais e cooperativas, em movimento.

NOTA
[1] Há uma tendência  no Brasil, a preferir-se “precariedade” a “precarismo”. Optamos por “precarismo” para evitar uma arapuca semântica: todos os substantivos construídos com o sufixo “-idade” (como “precariedade”) são, necessariamente, sempre, substantivos abstratos (de fato, em praticamente todas as línguas em que o sufixo ocorre). Não nos parece razoável acrescentar, a todas as dificuldades do precariato, mais essa dificuldade – terrível! – apresentar precariato mediante exclusivamente por um traço abstrato. Por piores que sejam os “-ismos”, entendemos que nenhum deles seria o que é sem a luta muito concreta dos que lutaram por eles, ou neles e, claro, também contra eles [NTs].