Resposta de Wisnik a texto de Nuno Ramos
Suspeitas
José Miguel Wisnik
Reflexões a partir do provocativo artigo de Nuno Ramos na 'Folha de S.Paulo'
O artigo do multiartista escritor Nuno Ramos na “Folha de S.Paulo”, na última quarta-feira, intitulado “Suspeito que estamos...”,
trata do estado da coisa com que nos debatemos diariamente sem saber
direito como debatê-la — o Brasil. Sugiro, a quem não leu, que leia o
quanto antes, se possível antes mesmo de ler isso aqui. Entre outras
implicações, o texto fala da violência que nos faz girar com ela “como
um animal preso no poste”; da “burrice urbana” a se espalhar por São
Paulo, Salvador, São Luís, Manaus, Natal; do “Caldeirão do Hulk”, do
Tropicalismo, de Ivete Sangalo, do “Jornal Nacional”; do Estado e da
esfera privada, da política e da economia, do Plano Real, do Bolsa
Família, da ditadura e da democracia; de Paulo Coelho, do padre Marcelo
Rossi e do pastor Edir Macedo; da Portuguesa de Desportos e de Galvão
Bueno; tudo apontando para os personagens anônimos da nossa dívida
interna insaldável.
Como embrulhar num pacote só essa mixórdia de história social, urbanismo, indústria cultural, política, economia, religião e futebol, indo do plano geral ao close, sem pretensão, sem cair no vozerio das opiniões e sem perder o fio? O fato é que a novidade do texto está, antes do que em seus conteúdos, no modo como chega a eles. Nuno Ramos diz ter relutado em aceitar o convite para escrever na página de Tendências e Debates da “Folha” por não se sentir preparado para tratar de nenhum dos temas propostos pelo jornal — por não ser autoridade em nenhum. Quando aceita, é para falar não do que sabe, mas do que suspeita. O artigo tem, então, a forma de uma engenhosa enumeração de suspeitas interligadas sobre o Brasil atual, com autoridade dúbia de escritor que, assumindo a condição do não sabido, vasa as fronteiras entre os assuntos e acaba formulando o que não se diz. É desse fraseado, dessa espécie de drible ensaístico e poético, que saem os estranhos gols que vêm na sequência. Inclusive porque o estado de suspeita, isto é, de latência, de um processo não formado que se lê nos indícios, é o melhor canal de contato, talvez o único, com aquilo que estamos vivendo.
Acredito ter lido hoje uma notícia que dá o Brasil como campeão mundial de homicídios. Nuno Ramos suspeita que a violência seja “o tema primordial e decisivo da sociedade brasileira”, a marcar viciosamente todos os outros. A convivência direta ou indireta, visível ou obscura, histórica e atual, com assassinatos, age como um “vírus de mutações constantes e velozes”, confundindo as noções de alto e baixo, direito e esquerdo, bem e mal, certo e errado, sugadas para o ralo de uma agoridade sem lastro cujo meio por excelência, agora suspeito eu, é a televisão, com sua onipresença sem contraponto e sem contraste.
Antes de chegar a ela, Nuno testemunha as cidades que apodrecem ao sol, onde ruínas tombadas pelo Iphan copulam com “despautérios azulejados de 30 andares”, desconectados de qualquer propósito cívico, e onde as praias estão comprimidas por paredões egoístas de edifícios. (Acredito que o filme “O som ao redor” capture essa mesma imagem de uma violência surda entranhada na paisagem urbana.)
As cenas de redenção de pobres, promovidas no programa de Luciano Hulk, mereceriam ser vistas naquilo que têm de cruel, humilhante e cretino. Ganharíamos em ter claro, suspeita ele, o que há de ridículo na coreografia de rostos virando de um para o outro e do outro para a câmera, com decorada naturalidade, na cena diária do “Jornal Nacional”: por que a nossa mais onipresente fonte de notícias precisa, afinal, desse teatro infantil? Por que as figuras televisivas ganham o status de ícones intocáveis, à maneira dos santos? E o que representa, em termos de violência imaginária e real, acrescento eu, o bombardeio publicitário incessante que acena com emplastos Brás Cubas miríficos — bebidas, automóveis, cartões de crédito — a uma sociedade fortemente desigual e a uma população sem o poder aquisitivo correspondente?
Acho que esse gap acompanha aquele outro apontado por Nuno Ramos: a migração contemporânea do imaginário político para o econômico se fez aqui, ao contrário dos países desenvolvidos, sem que uma razoável distribuição de renda tivesse ocorrido antes, sem que se pudesse prescindir do político, e sem que o Deus-PIB se curvasse ainda, e muito mais, ao Deus-cidadania. O PT, que deveria cumprir esse papel histórico, não quis ou não pôde fazê-lo. Sobreveio um encurtamento da imaginação e da vontade política, e uma vida cultural cujos parâmetros se confundiram ou se perderam.
Não falo nada disso em tom menor. Sinto a demonstração da capacidade de abordar o imaginário nacional concreto — de Paulo Coelho, Marcelo Rossi e Edir Macedo como privatizadores do infinito, por exemplo — sem complacência, sem maniqueísmo e sem ressentimento, com imaginação crítica e artística, como um indício animador. Vejo isso nas reações de alegria que o texto de Nuno Ramos provocou.
Como embrulhar num pacote só essa mixórdia de história social, urbanismo, indústria cultural, política, economia, religião e futebol, indo do plano geral ao close, sem pretensão, sem cair no vozerio das opiniões e sem perder o fio? O fato é que a novidade do texto está, antes do que em seus conteúdos, no modo como chega a eles. Nuno Ramos diz ter relutado em aceitar o convite para escrever na página de Tendências e Debates da “Folha” por não se sentir preparado para tratar de nenhum dos temas propostos pelo jornal — por não ser autoridade em nenhum. Quando aceita, é para falar não do que sabe, mas do que suspeita. O artigo tem, então, a forma de uma engenhosa enumeração de suspeitas interligadas sobre o Brasil atual, com autoridade dúbia de escritor que, assumindo a condição do não sabido, vasa as fronteiras entre os assuntos e acaba formulando o que não se diz. É desse fraseado, dessa espécie de drible ensaístico e poético, que saem os estranhos gols que vêm na sequência. Inclusive porque o estado de suspeita, isto é, de latência, de um processo não formado que se lê nos indícios, é o melhor canal de contato, talvez o único, com aquilo que estamos vivendo.
Acredito ter lido hoje uma notícia que dá o Brasil como campeão mundial de homicídios. Nuno Ramos suspeita que a violência seja “o tema primordial e decisivo da sociedade brasileira”, a marcar viciosamente todos os outros. A convivência direta ou indireta, visível ou obscura, histórica e atual, com assassinatos, age como um “vírus de mutações constantes e velozes”, confundindo as noções de alto e baixo, direito e esquerdo, bem e mal, certo e errado, sugadas para o ralo de uma agoridade sem lastro cujo meio por excelência, agora suspeito eu, é a televisão, com sua onipresença sem contraponto e sem contraste.
Antes de chegar a ela, Nuno testemunha as cidades que apodrecem ao sol, onde ruínas tombadas pelo Iphan copulam com “despautérios azulejados de 30 andares”, desconectados de qualquer propósito cívico, e onde as praias estão comprimidas por paredões egoístas de edifícios. (Acredito que o filme “O som ao redor” capture essa mesma imagem de uma violência surda entranhada na paisagem urbana.)
As cenas de redenção de pobres, promovidas no programa de Luciano Hulk, mereceriam ser vistas naquilo que têm de cruel, humilhante e cretino. Ganharíamos em ter claro, suspeita ele, o que há de ridículo na coreografia de rostos virando de um para o outro e do outro para a câmera, com decorada naturalidade, na cena diária do “Jornal Nacional”: por que a nossa mais onipresente fonte de notícias precisa, afinal, desse teatro infantil? Por que as figuras televisivas ganham o status de ícones intocáveis, à maneira dos santos? E o que representa, em termos de violência imaginária e real, acrescento eu, o bombardeio publicitário incessante que acena com emplastos Brás Cubas miríficos — bebidas, automóveis, cartões de crédito — a uma sociedade fortemente desigual e a uma população sem o poder aquisitivo correspondente?
Acho que esse gap acompanha aquele outro apontado por Nuno Ramos: a migração contemporânea do imaginário político para o econômico se fez aqui, ao contrário dos países desenvolvidos, sem que uma razoável distribuição de renda tivesse ocorrido antes, sem que se pudesse prescindir do político, e sem que o Deus-PIB se curvasse ainda, e muito mais, ao Deus-cidadania. O PT, que deveria cumprir esse papel histórico, não quis ou não pôde fazê-lo. Sobreveio um encurtamento da imaginação e da vontade política, e uma vida cultural cujos parâmetros se confundiram ou se perderam.
Não falo nada disso em tom menor. Sinto a demonstração da capacidade de abordar o imaginário nacional concreto — de Paulo Coelho, Marcelo Rossi e Edir Macedo como privatizadores do infinito, por exemplo — sem complacência, sem maniqueísmo e sem ressentimento, com imaginação crítica e artística, como um indício animador. Vejo isso nas reações de alegria que o texto de Nuno Ramos provocou.
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