quinta-feira, 5 de junho de 2014

Resposta a Nuno Ramos: "Isso passa"

"MARCELO COELHO via facebook, Andre Vallias

Isso passa

Li algumas vezes o artigo de Nuno Ramos, publicado quarta-feira passada na Folha, e continuo sem entender direito o que ele quis dizer.

Ele transmitiu, com espírito associativo de artista, as inquietações vagas de muita gente a respeito do futuro do país. Mas retratar sentimentos nebulosos é insuficiente --e o artigo termina com um lance retórico de alto impacto: "Suspeito que estamos fodidos".

A graça da coisa está em preparar secretamente o leitor para esse estampido final. O texto inteiro acumulava uma série de "suspeitas", com os parágrafos começando de maneira idêntica, para tratar das coisas mais variadas.

Nuno Ramos "suspeita" que a violência seja o tema principal da sociedade brasileira, encadeia isso a uma associação com a estreiteza das praias urbanas, com os shows de Luciano Huck, com a falência do tropicalismo, com a falsa intimidade da dupla do "Jornal Nacional", com a dívida que temos em relação a "priápicos" e "tiozinhos de padaria".

Expostas essas "suspeitas", e outras mais, vem a conclusão (ao mesmo tempo inapelável, arbitrária e conjetural): "Suspeito que estamos fodidos".

Não digo que estejamos ou não. Acho apenas que o efeito da última frase depende muito pouco do que veio antes. Ou melhor, sinto falta de encadeamento lógico no artigo --que acumula coisas como uma instalação.

Por certo, a violência na sociedade brasileira é e sempre foi muito grande. Uma das obras mais marcantes de Nuno Ramos, aliás, foi a instalação "111", cujo motivo era o massacre dos presos do Carandiru, em 1992.

Estamos hoje pior do que em 1992? Ou 1971? Não sei dizer; a novidade, em nossa ampla história de massacres de presos e torturas, talvez seja a de que a violência se reveste de bandeiras políticas contraditórias.

Os generais negavam que houvesse tortura. O governador Fleury nunca disse que desejava a morte dos presidiários. Hoje, quando amarram um menor de rua pelado a um poste, há quem aplauda. À esquerda, os black blocs defendem atos violentos contra "a violência dos bancos".

Essa nova "ideologização" da violência, com a defesa do linchamento imediato de delinquentes, ou a irrupção de vandalismo em movimentos que até a véspera eram pacíficos, teria então a ver com o que Nuno Ramos chama de "sentimento de agoridade" que assola o país.

Será por isso que ele "suspeita" da necessidade de "maior lentidão e inércia"? Será uma proposta política, uma proposta moral ou uma proposta estética?

Mas Nuno Ramos passa a outro assunto. Há prédios feios e desconectados da cidade (com o que concordo plenamente). Desconectados porque a classe média teme a violência? Mas por que acrescentar a ideia de que o Instituto do Patrimônio Histórico está aliado à especulação imobiliária?

Segue-se a "suspeita" de que há crueldade nos programas de TV. Mas isso é antigo, como Nuno bem sabe; ao lembrar-se de que Chacrinha jogava bacalhau na plateia há 40 anos, ele dá mais uma volta.

Os tropicalistas gostavam dos despautérios de Chacrinha, mas o tropicalismo talvez "tenha naturalizado nossa indústria cultural até um ponto sem retorno". Seria agora o momento de "perceber o tiquinho de crueldade" que havia nos programas de auditório.

O que isso significa? Que antigamente seria aceitável flertar com a indústria cultural, e agora não mais?

Mais adiante, Nuno Ramos "suspeita" que o Plano Real e o Bolsa Família não estejam distantes do "imaginário desenvolvimentista" da ditadura militar. Sim? Não? Talvez?

Será, por fim, verdade que privatizaram "a risada e o pôr do sol"? Devemos reclamar do fato que o lado positivo da vida está a serviço de interesses comerciais? Será que devemos reivindicá-lo para nossa arte, nosso jornalismo, nossa política?

Não digo que, com este último suspiro, Nuno Ramos esteja propondo que se abandone o espírito crítico. É seu espírito crítico que parece não achar exatamente um alvo.

A melancolia corresponde a uma perda de objeto: algo entre 1970 e 2014, não sabemos, está ou estava certo ou errado, mas de todo modo o país não tem volta. A sociedade se acelera; Nuno Ramos quer mais lentidão.

Suspeito que seu mal-estar tenha a ver com a emergência de novos atores sociais; suspeito que tenha a ver com certa angústia pré-Copa do Mundo; com a desaceleração do crescimento; com a ressaca de junho; suspeito que a melancolia passa logo."

FSP

Nenhum comentário: