"MARCELO COELHO via facebook, Andre Vallias
Isso passa
Li algumas vezes o artigo de Nuno Ramos, publicado quarta-feira passada
na Folha, e continuo sem entender direito o que ele quis dizer.
Ele transmitiu, com espírito associativo de artista, as inquietações
vagas de muita gente a respeito do futuro do país. Mas retratar
sentimentos nebulosos é insuficiente --e o artigo termina com um lance
retórico de alto impacto: "Suspeito que estamos fodidos".
A graça da coisa está em preparar secretamente o leitor para esse
estampido final. O texto inteiro acumulava uma série de "suspeitas", com
os parágrafos começando de maneira idêntica, para tratar das coisas
mais variadas.
Nuno Ramos "suspeita" que a violência seja o
tema principal da sociedade brasileira, encadeia isso a uma associação
com a estreiteza das praias urbanas, com os shows de Luciano Huck, com a
falência do tropicalismo, com a falsa intimidade da dupla do "Jornal
Nacional", com a dívida que temos em relação a "priápicos" e "tiozinhos
de padaria".
Expostas essas "suspeitas", e outras mais, vem a
conclusão (ao mesmo tempo inapelável, arbitrária e conjetural):
"Suspeito que estamos fodidos".
Não digo que estejamos ou não.
Acho apenas que o efeito da última frase depende muito pouco do que veio
antes. Ou melhor, sinto falta de encadeamento lógico no artigo --que
acumula coisas como uma instalação.
Por certo, a violência na
sociedade brasileira é e sempre foi muito grande. Uma das obras mais
marcantes de Nuno Ramos, aliás, foi a instalação "111", cujo motivo era o
massacre dos presos do Carandiru, em 1992.
Estamos hoje pior
do que em 1992? Ou 1971? Não sei dizer; a novidade, em nossa ampla
história de massacres de presos e torturas, talvez seja a de que a
violência se reveste de bandeiras políticas contraditórias.
Os
generais negavam que houvesse tortura. O governador Fleury nunca disse
que desejava a morte dos presidiários. Hoje, quando amarram um menor de
rua pelado a um poste, há quem aplauda. À esquerda, os black blocs
defendem atos violentos contra "a violência dos bancos".
Essa
nova "ideologização" da violência, com a defesa do linchamento imediato
de delinquentes, ou a irrupção de vandalismo em movimentos que até a
véspera eram pacíficos, teria então a ver com o que Nuno Ramos chama de
"sentimento de agoridade" que assola o país.
Será por isso que
ele "suspeita" da necessidade de "maior lentidão e inércia"? Será uma
proposta política, uma proposta moral ou uma proposta estética?
Mas Nuno Ramos passa a outro assunto. Há prédios feios e desconectados
da cidade (com o que concordo plenamente). Desconectados porque a classe
média teme a violência? Mas por que acrescentar a ideia de que o
Instituto do Patrimônio Histórico está aliado à especulação imobiliária?
Segue-se a "suspeita" de que há crueldade nos programas de TV. Mas isso
é antigo, como Nuno bem sabe; ao lembrar-se de que Chacrinha jogava
bacalhau na plateia há 40 anos, ele dá mais uma volta.
Os
tropicalistas gostavam dos despautérios de Chacrinha, mas o tropicalismo
talvez "tenha naturalizado nossa indústria cultural até um ponto sem
retorno". Seria agora o momento de "perceber o tiquinho de crueldade"
que havia nos programas de auditório.
O que isso significa? Que antigamente seria aceitável flertar com a indústria cultural, e agora não mais?
Mais adiante, Nuno Ramos "suspeita" que o Plano Real e o Bolsa Família
não estejam distantes do "imaginário desenvolvimentista" da ditadura
militar. Sim? Não? Talvez?
Será, por fim, verdade que
privatizaram "a risada e o pôr do sol"? Devemos reclamar do fato que o
lado positivo da vida está a serviço de interesses comerciais? Será que
devemos reivindicá-lo para nossa arte, nosso jornalismo, nossa política?
Não digo que, com este último suspiro, Nuno Ramos esteja propondo que
se abandone o espírito crítico. É seu espírito crítico que parece não
achar exatamente um alvo.
A melancolia corresponde a uma perda
de objeto: algo entre 1970 e 2014, não sabemos, está ou estava certo ou
errado, mas de todo modo o país não tem volta. A sociedade se acelera;
Nuno Ramos quer mais lentidão.
Suspeito que seu mal-estar tenha
a ver com a emergência de novos atores sociais; suspeito que tenha a
ver com certa angústia pré-Copa do Mundo; com a desaceleração do
crescimento; com a ressaca de junho; suspeito que a melancolia passa
logo."
FSP
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