"A idade de ouro.
O chamado milagre econômico brasileiro permite a difusão, à escala do país, do fato da classe média. [...] Essa explosão das classes médias acompanha, neste meio século, a explosão demográfica, a explosão urbana e a explosão do consumo e do crédito. [...]
Vale realçar que no Brasil do milagre, e até durante boa parte da década de 1980, a classe média se expande e se desenvolve sem que houvesse verdadeira competição dentro dela quanto ao uso dos recursos que o mercado ou o Estado lhe ofereciam para a melhoria do seu poder aquisitivo e do seu bem-estar material. Todos iam subindo juntos, embora para andares diferentes. Mas todos das classes médias estavam cônscios de sua ascensão social e esperançosos de conseguir ainda mais. Daí sua relativa coesão e o sentimento de se haver tornado um poderoso estamento. A competição foi, na realidade, com os pobres, cujo acesso aos bens e serviços se torna cada vez mais difícil, à medida que estes [os pobres] se multiplicam. Vale a pena lembrar as facilidades [p. 109/110] para a aquisição da casa própria, mediante programas governamentais com que foram privilegiados, enquanto os brasileiros mais pobres apenas foram incompletamente atendidos nos últimos anos do regime autoritário. A classe média é a grande beneficiária do crescimento econômico, do modelo político [ditadura] e dos projetos urbanos adotados.
Tal classe média, ao mesmo tempo que se diversifica profissionalmente, aumenta seu poder aquisitivo e melhora qualitativamente, por meio das oportunidades de educação que lhe são abertas, tudo levando à ampliação do seu bem-estar (o que hoje se chama de qualidade de vida), conduzindo-a a acreditar que a preservação das vantagens e perspectivas estivesse assegurada. [...] Tudo o que alimenta a classe média dá-lhe, também, um sentimento de inclusão no sistema político e econômico, e um sentimento de segurança, estimulado pelas constantes medidas do poder em seu favor. Tratava-se, na realidade, de uma moeda de troca, já que a classe média constituía uma base de apoio às ações do governo.
Forma-se, dessa maneira, uma classe média sequiosa de bens materiais, a começar pela propriedade, e mais apegada ao consumo que à cidadania, sócia despreocupada do crescimento e do poder com os quais se confundia. Daí a tolerância, senão a cumplicidade, com o regime autoritário. O modelo econômico importava mais do que o modelo cívico. Eram essas, aliás, condições objetivas necessárias a um crescimento econômico sem democracia. Quando o regime militar esgota seu ciclo, a democracia se instala incompletamente na década de 1980, guardando todos esses vícios de origem e sustentando um regime representativo falsificado [...] (p. 110)
Vale realçar que no Brasil do milagre, e até durante boa parte da década de 1980, a classe média se expande e se desenvolve sem que houvesse verdadeira competição dentro dela quanto ao uso dos recursos que o mercado ou o Estado lhe ofereciam para a melhoria do seu poder aquisitivo e do seu bem-estar material. Todos iam subindo juntos, embora para andares diferentes. Mas todos das classes médias estavam cônscios de sua ascensão social e esperançosos de conseguir ainda mais. Daí sua relativa coesão e o sentimento de se haver tornado um poderoso estamento. A competição foi, na realidade, com os pobres, cujo acesso aos bens e serviços se torna cada vez mais difícil, à medida que estes [os pobres] se multiplicam. Vale a pena lembrar as facilidades [p. 109/110] para a aquisição da casa própria, mediante programas governamentais com que foram privilegiados, enquanto os brasileiros mais pobres apenas foram incompletamente atendidos nos últimos anos do regime autoritário. A classe média é a grande beneficiária do crescimento econômico, do modelo político [ditadura] e dos projetos urbanos adotados.
Tal classe média, ao mesmo tempo que se diversifica profissionalmente, aumenta seu poder aquisitivo e melhora qualitativamente, por meio das oportunidades de educação que lhe são abertas, tudo levando à ampliação do seu bem-estar (o que hoje se chama de qualidade de vida), conduzindo-a a acreditar que a preservação das vantagens e perspectivas estivesse assegurada. [...] Tudo o que alimenta a classe média dá-lhe, também, um sentimento de inclusão no sistema político e econômico, e um sentimento de segurança, estimulado pelas constantes medidas do poder em seu favor. Tratava-se, na realidade, de uma moeda de troca, já que a classe média constituía uma base de apoio às ações do governo.
Forma-se, dessa maneira, uma classe média sequiosa de bens materiais, a começar pela propriedade, e mais apegada ao consumo que à cidadania, sócia despreocupada do crescimento e do poder com os quais se confundia. Daí a tolerância, senão a cumplicidade, com o regime autoritário. O modelo econômico importava mais do que o modelo cívico. Eram essas, aliás, condições objetivas necessárias a um crescimento econômico sem democracia. Quando o regime militar esgota seu ciclo, a democracia se instala incompletamente na década de 1980, guardando todos esses vícios de origem e sustentando um regime representativo falsificado [...] (p. 110)
A escassez chega às classes médias.
Tal situação tende a mudar quando a classe média começa a conhecer a experiência da escassez, o que poderá levá-la a uma reinterpretação de sua situação. Nos anos recentes, primeiro de forma lenta ou esporádica e já agora de modo mais sistemático e continuado, a classe média conhece dificuldades que lhe apontam para uma situação existencial bem diferente daquela que conhecera havia poucos anos. Tais dificuldades chegam em um tropel: a educação dos filhos, o cuidado com a saúde, a aquisição ou o aluguel da moradia, a possibilidade de pagar pelo lazer, a falta de garantia no emprego, a deterioração dos salários, a poupança negativa e o crescente endividamento estão levando ao desconforto quanto ao presente e à insegurança quanto ao futuro, tanto o futuro remoto quanto o imediato. [...] A tudo isso se acrescentam, dentro do próprio lar, a apreensão dos filhos em relação ao futuro profissional e as manifestações cotidianas desse desassossego.
Já que não mais encontram os remédios que lhes eram oferecidos pelo mercado ou pelo Estado como solução aos seus problemas individuais emergentes, as classes médias ganham a percepção de que já não mandam, ou de que já não mais participam da partilha do poder. Acostumadas a atribuir aos políticos a solução dos seus problemas, proclamam, agora, seu descontentamento, distanciando-se deles. Elas já não se vêem espelhadas nos partidos e por isso se instalam num desencanto mais abrangente quanto à política propriamente dita. Isso é justificado, em parte, pela visão de consumidor desabusado que alimentou durante décadas, agravada com a fragmentação pela mídia, sobretudo televisiva, da informação e da interpretação do processo social. A certeza de não mais influir politicamente é fortalecida nas classes médias, levando-as, não raro, a reagir negativamente, isto é, a desejar menos política e menos participação, quando a reação correta poderia e deveria ser exatamente a oposta. (p. 111)"
Tal situação tende a mudar quando a classe média começa a conhecer a experiência da escassez, o que poderá levá-la a uma reinterpretação de sua situação. Nos anos recentes, primeiro de forma lenta ou esporádica e já agora de modo mais sistemático e continuado, a classe média conhece dificuldades que lhe apontam para uma situação existencial bem diferente daquela que conhecera havia poucos anos. Tais dificuldades chegam em um tropel: a educação dos filhos, o cuidado com a saúde, a aquisição ou o aluguel da moradia, a possibilidade de pagar pelo lazer, a falta de garantia no emprego, a deterioração dos salários, a poupança negativa e o crescente endividamento estão levando ao desconforto quanto ao presente e à insegurança quanto ao futuro, tanto o futuro remoto quanto o imediato. [...] A tudo isso se acrescentam, dentro do próprio lar, a apreensão dos filhos em relação ao futuro profissional e as manifestações cotidianas desse desassossego.
Já que não mais encontram os remédios que lhes eram oferecidos pelo mercado ou pelo Estado como solução aos seus problemas individuais emergentes, as classes médias ganham a percepção de que já não mandam, ou de que já não mais participam da partilha do poder. Acostumadas a atribuir aos políticos a solução dos seus problemas, proclamam, agora, seu descontentamento, distanciando-se deles. Elas já não se vêem espelhadas nos partidos e por isso se instalam num desencanto mais abrangente quanto à política propriamente dita. Isso é justificado, em parte, pela visão de consumidor desabusado que alimentou durante décadas, agravada com a fragmentação pela mídia, sobretudo televisiva, da informação e da interpretação do processo social. A certeza de não mais influir politicamente é fortalecida nas classes médias, levando-as, não raro, a reagir negativamente, isto é, a desejar menos política e menos participação, quando a reação correta poderia e deveria ser exatamente a oposta. (p. 111)"
Milton Santos. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Edição de 2011.
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