Edição 104 - set/13
Ler a vida, ler o mundo, reescrever a esperança
Um dos livros mais lidos e reeditados de Paulo Freire, sem falar, é claro, de Pedagogia do oprimido (1987), é o intitulado A importância do ato de ler: em três artigos que se completam (FREIRE,
Cortez, 1992) que, em 1999 já se encontrava em sua 37ª edição. Os
artigos que compõem este livro são originários de textos escritos e
apresentados por Freire em diferentes palestras em 1981 a 1982.
Portanto, há mais de 30 anos. Mesmo assim, estamos falando de reflexões
atualíssimas, 32 e 33 anos após as suas publicações, sobretudo, no
sentido de reafirmarem a natureza política e transformadora da educação e
da leitura.
Em apresentação do próprio Paulo Freire, para a edição de 1999, ele escreve que
Em sociedade que exclui dois terços de sua população e que impõe
ainda profundas injustiças à grande parte do terço para o qual funciona,
é urgente que a questão da leitura e da escrita seja vista
enfaticamente sob o ângulo da luta política e que a compreensão
científica do problema traz sua contribuição (FREIRE, 1999, pg. 9).
Freire está se referindo à luta política que se fazia e ainda hoje se
faz necessária, visando “à superação dos obstáculos impostos às classes
populares para que leiam e escrevam”. (idem). E estes obstáculos, que
antes se limitavam à alfabetização da leitura e da escrita, hoje
ampliam-se para outros campos: analfabetismo cultural, analfabetismo
digital, analfabetismo tecnológico e assim por diante. Nesse sentido, é
inequívoca a relevância de retomarmos esta discussão em tempos de
marchas e de participação social e popular em pleno século 21 (em tempos
de CONAE 2014!), de protestos organizados, desorganizados, que se dizem
“apolíticos” e “apartidários”, mas também de movimentos políticos,
organizados, partidarizados, de marchas dos indignados do/pelo mundo e
dos “black bloc”[1]
que, ao seu modo, escrevem novas e importantes páginas na nossa
história. E vejam que interessante: acabei de reler e aqui registro um
outro texto de Paulo Freire, escrito “recentemente”, prefaciando a
edição brasileira do livro Alunos Felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários, de Georges Snyders (SNYDERS, 2005):
(...) Para quem duvida que a alegria de viver está sendo intensamente
assumida pela juventude hoje, que se dê conta da geração de
adolescentes e jovens que, recentemente, enchendo as praças e as ruas,
cantando, de cara pintada, vestidos multicolormente, inauguravam uma
nova forma de fazer política. Se batiam pelo impedimento do presidente,
finalmente conseguido. Não vieram às ruas sisudos, de paletó e gravata,
de colarinho duro. Vieram em algazarra criadora. Vieram cantando. Vieram
alegres e firmes. Falaram. Criticaram. Choraram. Exigiram vergonha
(...)”. (FREIRE, janeiro de 1993. In: SNYDERS, 2005. p. 10).[2]
Refletindo sobre a importância de realizarmos diferentes leituras,
visando ao nosso melhor fazer docente, sobretudo em tempos em que ainda
escutamos que educadoras e educadores não se interessam por esta prática
– afirmação certamente “desajustada” e descontextualizada, que não
considera nem a falta de qualidade de muitas publicações hoje existentes
(sobretudo no campo da autoajuda) e, muito menos, o preço exorbitante
dos livros, nem mesmo os salários aviltantes que continuamos recebendo,
tendo um dos menores pisos salariais do país, em comparação com outras
profissões, com o mesmo nível de formação: R$ 1.567,00. Um número fácil
de decorar, de entristecer e capaz de desencorajar as novas e futuras
gerações a se interessarem pelo magistério.
Em 2013 comemoramos 50 anos da marcante e simbólica experiência de
Paulo Freire em Angicos, alfabetizando 300 pessoas em 40 dias, abrindo a
oportunidade de o Brasil enfrentar, desde aquela época, os já 14
milhões de brasileiras e brasileiros analfabetos, números que, hoje,
pasmem, (50 anos depois!) são praticamente os mesmos – isso, sem
falarmos no número do analfabetismo funcional da leitura e da escrita,
muito maior que isso, e que ainda assola o nosso país.
Como forma de contribuir para superar estes dados alarmantes da
educação nacional é que se faz necessário a valorização da leitura em
todos os seus significados e amplitudes. Registro aqui, para provocar
nossa reflexão sobre o tema, três de suas variáveis: ler a vida, ler o
mundo, reescrever a esperança.
Ler é sempre um ato de conhecimento, de aprendizagem, de ensinamento,
de crescimento pessoal e coletivo: a leitura nos inspira, alegra a
nossa alma, resgata as nossas lembranças, provoca a nossa ira, causa-nos
emoções, muda a nossa vida, acalma, aproxima-nos de outras pessoas e de
outras culturas, fortalecendo-nos para a luta e para as transformações
sociais que buscamos por meio da própria educação. Mas não basta apenas
“ler”. Trata-se de ler, de tomar consciência da realidade lida e, com
base nesse movimento, buscar transformar a realidade e a nós mesmos/as.
Como permanecemos em luta política contra a injustiça, seguimos
também brigando por participação popular e social (Gadotti, 2013), bem
como pelo direito ao acesso à leitura e à educação como direito
fundamental. E arrisco-me a dizer que na atual conjuntura nacional e
internacional, quem não souber ler e interpretar o que está se passando
na atualidade, como processo e resultado de lutas políticas históricas,
não será capaz de pronunciar a sua palavra grávida das mudanças
necessárias para uma vida mais feliz para todas as pessoas. Nesse
sentido, registro e reafirmo a necessidade de lermos a vida, o mundo e a
esperança, reescrevendo-os sempre.
Ler a vida – trata-se de enxergar a vida que vivemos
hoje, comparadas às condições que tínhamos anos atrás e de realizarmos
agora os sonhos sonhados no passado, mas com coerência ética, estética,
ideológica e política. E sempre praticarmos a “pedagogia da pergunta”:
temos sido coerentes com os princípios e valores que defendemos outrora?
Ou, ao contrário, desviamo-nos a tal ponto do nosso caminho que
chegamos a negar, hoje, tudo o que defendemos ontem? Qual o sentido e o
significado de estarmos hoje onde estamos? Como aproveitar as lições
aprendidas no passado e como não perdermos a oportunidade de deixarmos
as nossas “pegadas” na história, visando a um mundo mais justo e a uma
vida mais plena e mais feliz para todas as pessoas, para todos os seres
vivos e para todos os ecossistemas?
Como escreveu Paulo Freire, “não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não apenas para me adaptar, mas para mudar”. (1997, pg. 85-85). Acrescente-se a isso a perspectiva da educação intertranscultural
(Padilha 2007), que tem como ponto de partida as relações entre as
pessoas e, destas, com todos os ecossistemas. Os conhecimentos da
ciência, da arte e da política, por exemplo, compõem este cenário de
aprendizagens complexas, transformadoras, com sentido e significado.
Ler o mundo – Ler e enxergar o mundo é mais do que
olhar para ele na sua superfície: é estarmos permanente e
estrategicamente atentos e atentas ao que se passa ao nosso lado e ao
que está distante de nós, em profundidade. É superar nosso eventual
daltonismo em relação às pessoas com quem convivemos e em relação à
realidade que nos cerca e em todos os espaços sociais nos quais vivemos
ou por onde passamos. Ler o mundo enquanto processo que envolve
aprendizes e ensinantes de suas histórias recíprocas, ambos, vivendo e
dividindo processos criadores.
Como também nos ensina Freire,
“desde o começo, na prática democrática e crítica, a leitura do mundo
e a leitura da palavra estão dinamicamente juntas. O comando da leitura
e da escrita se dá a partir de palavras e de temas significativos à
experiência comum dos alfabetizandos e não de palavras e de temas apenas
ligados à experiência do educador”. (1997, pg. 29).
Trata-se de aprofundar o que já sabemos, conhecer, desvelar e
interpretar diferentes dimensões da realidade – social, econômica,
política, ética, estética, ambiental, sexual, cultural, etc. – e
também do real – significando tudo o que existe dentro e fora da mente
humana, o que inclui o que é concreto, o que é abstrato, o que é
simbólico, o que é mitológico – descobrindo o que não sabemos e estando
sensíveis e humildes para aprender, com o outro, que nós mesmos podemos
mudar o rumo da nossa história pessoal quanto mais estivermos abertos às
mudanças.
Vivemos no século 21, às vezes ainda impregnados de princípios e
valores do século 19. Aí nos perguntamos: como podemos defender
transformações se nos declaramos pessoas dialógicas e mudancistas,
democráticas e sensíveis, mas se não formos capazes de mudar ou de
estarmos abertos a novas concepções de vida, de educação, a novas visões
de mundo e de natureza humana? Como influenciarmos mudanças se nos
mantivermos nas nossas certezas, nos nossos preconceitos, na nossa
pseudossabedoria e nas nossas inquestionáveis certezas? Quem já não
ouviu alguém dizer “eu sou assim e não mudo”! Podemos observar: quanto
mais certeza temos sobre algo, maior poderá ser o tamanho do nosso erro
e, também, maior possivelmente será a nossa ignorância. Paulo Freire
dizia, quando nos falava de seu pensamento complexo – sem se referir
exatamente à complexidade, que não é impossível estarmos certos de
alguma coisa. Impossível é estarmos absolutamente certos. (1997).
Reescrever a esperança - A esperança existe mas,
diante de certos contextos e desafios, temos a impressão de que, ela
própria, está em nós enfraquecida. Mas com determinação e com capacidade
de ler a realidade, o real e de sonhar com um mundo melhor, é que novas
esperanças se inscrevem em nossas vidas e no mundo em que vivemos.
Renovados em nossas esperanças, com a força dos encontros e dos projetos
dialógicos, democráticos e coletivos, percebemos que, aos poucos,
retomamos a força para que outras educações e outros mundos também sejam
reescritos. Segundo Paulo Freire,
“Mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no
mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra
presença como um 'não eu' se reconhece como 'si própria'. Presença que
pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma,
que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara,
avalia, valora, decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da
avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a
necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna
inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma
virtude”. (Freire, 1997, p. 20).
Ler a vida, ler o mundo e reescrever a esperança, significa tornar
estas leituras presentes em todas as fases de nossas vidas, dentro e
fora da escola em que vivemos, na qual estamos e atuamos como
aprendentes e ensinantes. “A mudança do mundo implica a dialetização
entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação,
no fundo, o nosso sonho”. (Idem, p. 88). Ler, interpretar e transformar
o mundo são práticas de quem deseja construir, efetivamente, outros
mundos e outras educações, possíveis, necessárias e urgentes. Com
“paciência impaciente” e com “esperança sem espera”.
Referências bibliográficas
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo, Cortes, 37 ed., 1999.
FREIRE, Paulo. Prefácio À Edição Brasileira. In: SNYDERS, Georges. Alunos felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários. São Paulo, Editora Paz e Terra, 2005. p. 9-10.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Paz e Terra, 1997.
GADOTTI, Moacir. Gestão democrática com participação popular: planejamento e organização da educação nacional. São Paulo, Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2013. Cadernos de Formação v.6.
PADILHA, Paulo Roberto. Educar em todos os cantos: por uma educação intertranscultural. São Paulo, Cortez, 2007; Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2012.
Paulo Roberto Padilha é Pedagogo, mestre e doutor em educação
pela Faculdade de Educação da USP. Diretor do Instituto Paulo Freire.
Músico e bacharel em Ciências Contábeis. É autor de vários livros, entre
eles Educar em todos os cantos, Educação Integral, Educação cidadã, Município que Educa, Currículo Intertranscultural, Planejamento Dialógico.
E-mail:
padilha@paulofreire.org
www.paulofreire.org
[1]
“Black Bloc foi o termo sugerido de forma confusa na imprensa nacional.
Seriam jovens anarquistas anticapitalistas e antiglobalização, cujo lema
passa por destruir a propriedade de grandes corporações e enfrentar a
polícia. Nas capas de jornais e na boca dos âncoras televisivos, eram 'a
minoria baderneira' em meio a 'protestos que começaram pacíficos e
ordeiros'. Uma abordagem simplista diante de um fenômeno complexo”.
(reportagem da capa da Revista Carta Capital, por Piero Locatelli e
Willian Vieira, intitulada “O black bloc está na rua”. Edição 7 de
agosto de 2013 Ano XVIII No 760. pg. 22 a 26).
[2] Vejam só.... este texto foi escrito há exatamente 30 anos e 7 meses. Alguma semelhança com os nossos dias não será pura coincidência. Infelizmente.
Por Paulo Roberto Padilha
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