O maior penalista brasileiro em defesa da democracia contra a "onda
reacionária" que envolve até setores da esquerda, pela repressão de
protestos:
"CARTA DO PROF. DR. JUAREZ TAVARES PARA O SEN. ROBERTO REQUIÃO
Caro Roberto,
Como você se deve lembrar, fomos colegas de turma na UFPR. Você se
orientou para a política e eu, para a academia. Fiz cursos no exterior e
cheguei ao topo da carreira docente, como professor titular de direito
penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor
convidado-visitante nas universidades de Frankfurt, Buenos Aires e
Sevilha. Igualmente, até completar 70 anos, exerci o cargo de
Subprocurador-Geral da República.
Agora, diante dos projetos de
criminalizar atos de terrorismo e, ainda mais, as chamadas "desordens",
venho pedir ao caro colega e amigo que se posicione, de forma incisiva,
contra a aprovação desses projetos.
Quando da edição do
Estatuto de Roma, em 1998, que deu corpo jurídico ao Tribunal Penal
Internacional, os signatários, orientados por assessores jurídicos de
alta qualificação, rejeitaram a proposta de criminalizar o terrorismo
por não encontrarem elementos seguros que pudessem ser usados na sua
definição.
Mesmo em países que sofreram atos verdadeiros de
terrorismo, como a Alemanha, sua definição sempre foi contestada pela
doutrina e, hoje, se resume, praticamente, a uma especialização do crime
de quadrilha. E,mesmo assim, são avassaladoras as críticas que se lhe
fazem.
Deve-se ver, e você bem sabe disso, desde os tempos em
que militávamos juntos na política estudantil, que não se pode confundir
"terrorismo" com meras infrações de ordem pública. Para essas
infrações, os países previram leis especiais: a
Ordnungswidrigkeitsgesetz, na Alemanha, e a Lei de Contra Ordenações, em
Portugal, as quais, todavia, não contemplam delitos ou crimes, mas,
sim, uma forma branda de contravenção, punida com uma multa sem caráter
criminal.
A criminalização de uma conduta de alta magnitude tem
que ser resultado de uma ampla discussão, não apenas no âmbito
parlamentar, mas na esfera pública em geral, nas ruas, nas academias,
nas associações, nos congressos, nos seminários, nos encontros de
professores, juízes, membros do Ministério Público, advogados,
intelectuais de todas as origens e do próprio povo. A lei penal, em face
das graves consequências que produz, não pode ser simplesmente o
sucesso de interesse de uma maioria; deve ser elaborada de modo a
contemplar e proteger também os interesses das minorias.
Além
disso, devem as leis definir de forma iniludível as condutas proibidas,
de tal sorte que os cidadãos possam tomar plena consciência do que podem
ou não podem fazer. Essa é uma exigência constitucional do princípio da
legalidade (art. 5º, XXXIX), não atendida nos respectivos projetos. Não
se pode deixar na criatividade dos julgadores a decisão acerca do que
se deva entender por proibido ou mandado.
Para criminalizar não
basta dizer que uma ação imponha terror ou pânico na população, com
resultados de lesão pessoal ou dano patrimonial. Se alguém grita "fogo"
em um cinema lotado cometerá a contravenção de falso alarma (LCP,
art.41), que causa pânico nos espectadores e pode provocar-lhes,
inclusive, lesões ou danos, mas jamais se poderá confundir com o
terrorismo, o qual está vinculado de forma indelével a estruturas
fundamentalistas orientadas a derrocar o próprio Estado Democrático.
A vingarem esses projetos, seriam criminalizadas condutas comuns da
vida, como o trote de calouros, os protestos contra os árbitros de
futebol, as gritarias provindas de grupos boêmios e até os atos de
comemoração mais acalorada. Afora, claro, condutas que nada têm a ver
com finalidades políticas de destruição do Estado, como as brigas de
torcidas organizadas. E serão criminalizadas, com esses projetos, as
manifestações mais legítimas da população.
O Código Penal já
prevê, por seu turno, como delituosas todas as condutas que possam lesar
ou pôr em perigo bens jurídicos da pessoa ou mesmo daqueles vinculados à
comunidade ou ao Estado, como o homicídio, as lesões, os delitos
relativos à periclitação da vida e da saúde, a rixa, os delitos contra a
incolumidade pública (incêndio, explosão, etc.), os delitos
patrimoniais e contra os agentes do Estado.
Não há a menor
necessidade de novos tipos de criminalização, que só podem servir para a
derrocada do Estado Democrático de Direito. Não vamos nos iludir
novamente pelos efeitos simbólicos da legislação e nem regressar ao
passado ditatorial. O direito penal é um instrumento de repressão e só
pode ser usado em situação de extrema e estrita necessidade, quando não
haja outro recurso para a proteção da pessoa.
Espero que você, com sua inteligência e capacidade de argumentação, possa conter essa onda repressiva.
Forte abraço,
Juarez Tavares"
Nenhum comentário:
Postar um comentário