de Murilo Duarate Costa Correa
Arrastão. – Quando Tom Zé publicou sua exegese de Tô ficando atoladinha, a canção-anátema de Tati Quebra-Barraco, as reações dos estetas formais da Moderna Música Popular Brasileira foram agressivas e imediatas. Os adversários de Tom Zé acusavam seu mais recente álbum, Estudando a bossa nova, de conter “injustificáveis influências do funk carioca”. Quando Tom Zé justificou não ver ali nenhuma contradição, pois o funk carioca teria sido “uma das ondas concêntricas desencadeadas pela bossa nova”, as reações foram ainda mais hostis. Era 2008, e o funk abandonava seu círculo tradicional para cair de uma vez por todas no gosto popular.
Enquanto a internet e a democratização da cultura do compartilhamento subiam o morro promovendo novas formas de invenção e acesso à cultura, o “som de preto, de favelado” que “quando toca, ninguém fica parado”, descia e invadia o Rio com a força de um fluxo novo, vencendo as resistências que os sambas de Janet de Almeida – a autora de Eu sambo mesmo e Pra quê discutir com madame? – haviam imortalizado. Mais tarde, na voz de João Gilberto, os sambas de Janet de Almeida, que ridicularizavam a eugenia musical da elite brasileira com ironias tão finas quanto contestatórias, encontrava eu híbrido em ritmo de bossa. Como o DJ Malboro, com seu som de preto e de favelado, não seria uma das vagas desencadeadas pelo samba e pela sua progressiva assimilação social? Tom Zé talvez ignorasse, mas sua exegese de Tô ficando atoladinha foi mais que a protagonista de um mero choque de gosto; foi a exposição radical do preconceito de classe que continua a atravessar a Moderna Música Popular Brasileira e que se dissimula sob o verniz do cultivado.
Quando Tom Zé – o inventor da estética do arrastão em Defeito de Fabricação (1998) – afirmava a congenialidade entre o “metarrefrão microtonal e plurisemiótico” de To ficando atoladinha e a bossa nova, foi como um golpe triplo: (1) denunciar a função política exercida pelo canto gregoriano na naturalização das escalas – que, de microtonais, passavam a ser diatônicas; (2) restaurar a dignidade da escala microtonal, demonizada pela forma estética imposta pela Igreja Católica; (3) atestar, na microtonalidade, a origem comum da bossa nova e do funk carioca. Esse gesto, antiplatônico, desterrava as hierarquias consolidadas; proclamava a verdade demoníaca que o funk só poderia ter herdado, na espiral do tempo, precisamente do que havia de mais refinado e cool na recente história da música popular brasileira: a microtonalidade dissonante da bossa, produto de furto e objeto da reinvenção da estética do arrastão dos pretos e favelados.
Por dentro. – O rolezinho está para o shopping center assim como o funk ostentação está para a bossa nova. Dois agenciamentos cujo horizonte de aparição assume a forma efêmera do choque de gosto, mas oculta, sob sua superfície, uma renovada emergência da luta de classes, e ali onde menos se espera: nos modos de consumo da cultura. Tudo se passa sob o signo da contradição e do imaginário dialético: é a ralé do rolê contra os mauricinhos de rolex; as tchutchucas de shortinho e chapinha no cabelo contra a Garota de Ipanema. Porém, em 2013, a filha da Garota de Ipanema dançou o quadradinho de 8. Assim como o funk é o filho bastardo da microtonalidade da bossa nova, o rolezinho é o filho monstruoso do shopping center. Congenialidade analógica: talvez não seja por simples acaso que quando pobre resolve dar um rolê, na praia ou no shopping, seu passeio, no léxico do poder, vire logo arrastão – não há outra forma estética possível senão confrontar o legítimo com o bastardo e o doente de normalidade com a força do monstruoso.
Todavia, sob toda equivalência em diagonal (funk/bossa; rolê/shopping), há uma inequação insuspeita. Ela se confunde precisamente com a diferença que ultrapassa os termos “legítimo” e “bastardo”, “normal” e “monstruoso” e, no seio de sua congenialidade, atesta sua diferença recíproca. Basta perguntar a qualquer segurança de shopping, ou policial: há uma diferença entre o maloqueiro e o mauricinho, entre a ralé e o rolex, que é fenomenológica, eugênica – pois a questão racial é flagrante –, mas também política.
Há uma moda mauricinho, uma forma exterior de aparição, uma codificação dos hábitos e dos gestos, como há uma estilização maloqueiro: boné, bermudas enormes, camisa polo, correntes, óculos de sol, celular na mão... sob um choque de gosto, um choque de signos, de regimes de signos incompossíveis para o capital. Na superfície das formas de consumo da cultura, o encontro intensivo entre formas de vida diferentes em um espaço que tem se tornado cada vez mais comum no Brasil: o do consumo e o do valor social do consumo: a ostentação.
A ostentação é o “por dentro” do rolezinho, o gesto de pertença a um mundo que não é o seu – o signo da “invasão” por excelência. Porém, mais a fundo, a ostentação encerra a apropriação de uma forma de relação social mediatizada pelos objetos e sua conversão em mote político. Querer o que os mauricinhos podem ter, com outro corpo, outra pele, outra história e outro modo de existência, revela um potencial de liberação de uma forma desejante que nem pode se realizar no mercado, nem parece – como as liminares judiciais e confrontos policiais recentemente comprovaram – poder ser contida por ele. O mauricinho está curtindo por dentro. O maloqueiro “zoa” no shopping porque está curtindo por dentro e contra.
… e contra. – Em uma entrevista no fim de sua vida, Deleuze afirmava que “Direitos Humanos” eram coisa “de intelectuais sem ideias próprias”; que a verdadeira filosofia do direito era a jurisprudência. A afirmação de Deleuze não deveria causar mais espécie do que as práticas estatais de segurança pública e manutenção militar da ordem. Seja como for, procuremos compreender a polêmica – e quase sempre mal-compreendida – afirmação de Deleuze sobre os direitos humanos. O aparente menosprezo de Deleuze pelos direitos humanos não deve ser confundido com sua proscrição ou inutilidade. Está vinculado, antes, à denúncia dos compromissos vergonhosos que se utilizam da forma jurídica para combater precisamente aqueles a quem o direito deveria proteger. Abstrações metafisicas, construídas sobre uma antropologia evanescente como Auschwitz teria comprovado de uma vez por todas, os direitos humanos não podem significar nada senão uma gramática de luta e defesa de direitos, como quisera Douzinas, ou, então, uma retórica de difusão dos valores do Império, como quiseram Negri e Hardt.
Todavia, sobre os direitos humanos, Deleuze não compartilha nem o otimismo vigilante de Douzinas, nem a crítica veraz de Hardt e Negri. O bergsonismo de Deleuze implica que o direito, e uma filosofia do direito, só possam constituir-se em relação com um campo problemático concreto; isto é, em correlação com um universo de singularidades reais contra a qual se debate um povo que se inventa em busca de uma nova terra. Os direitos humanos, abstratos e descarnados, são mesmo, como quisera Deleuze, assunto para “intelectuais sem ideias próprias”. Porém, no terreno singular de lutas em que se constituem e inventam, são produtos de uma filosofia do direito que se confunde com a jurisprudência, constituídos por prolongamentos sutis e embates, procedem por criação.
Sob essa luz, black blocs e os jovens do rolezinho são os maiores filósofos do direito de que o Brasil teve notícia nos últimos anos. Eles inventam direitos, cada um a sua maneira, contra o Estado e contra o mercado, e o fazem concretamente, questionando a repartição entre os ilegalismos lícitos e os ilícitos. Dia 11 de janeiro de 2014, o Shopping JK Iguatemi – um dos mais luxuosos centros comerciais da cidade de São Paulo – obteve uma decisão liminar que impedia a realização de um rolezinho em suas dependências físicas, com apoio não apenas de sua segurança privada, como das polícias Civil e Militar). O conteúdo da decisão liminar, concedida por Alberto Gibin Villela, não é outro, senão o apelo a “direitos fundamentais” vazios e abstratos: “A Constituição Federal estabeleceu direitos fundamentais a todos. Esses direitos importam também em obrigações a cada um, que tem o dever de olhar a sua volta para avaliar se a sua conduta não invade a esfera jurídica alheia. O Estado não pode garantir o direito de manifestações e olvidar-se do direito de propriedade, do livre exercício da profissão e da segurança pública. Todas as garantias tem a mesma importância e relevância social e jurídica. ”
O menosprezo aparente de Deleuze pelos direitos humanos, que não passava de uma recusa a colocar o problema da filosofia do direito à moda tradicional, abstrata, caberia também aqui. Toda a questão da filosofia do direito se esgota na invenção política de direitos, em sua afirmação em tensão com uma singularidade concreta que não pode ser contida nas teorias de direitos fundamentais ou nas colisões de princípios. Com razão, ao mesmo tempo em que Deleuze afirmava que “a jurisprudência é a verdadeira filosofia do direito”, dizia “ela não deveria ser confiada aos juízes”.
Já é tempo de abandonar as concepções ideais sobre o direito e de perceber que as operações jurídicas criam pedaços de real em que podemos viver, circular, consumir, que são interditados e que se transformam em campos de batalha. Toda operação jurídica é – como a liminar do caso JK Iguatemi atesta, apesar de toda a sua obscena atecnica – uma ontologia política que se confunde com a invenção de direitos. O grande direito que está por ser inventado no Brasil contemporâneo, e que é afirmado heterogeneamente nas táticas black blocs e nos rolezinhos, contra o Estado e contra o capital, é o direito ao rolê, à circulação insujeita dos corpos – no espaço público como no privado. Invenção de um Fora do Estado e do mercado que começa a se replicar por todo o país. Invenção política de um outro mundo possível. Se, por ora, não há outro mundo para além ou para fora deste, o rolê é o gesto político contestatório por excelência: por dentro e contra – plano em que a estética quase-oswaldiana do arrastão, de Tom Zé ("Só me interessa o que não é meu"), reencontra a aquela mesma galera que, como na Tropicália, só quer sair, se divertir, dar um rolê. Rolê é amor: da cabeça aos pés. Dê um rolê.
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