segunda-feira, 21 de outubro de 2013
É preciso entender as redes e as ruas por Laymert Garcia dos Santos
20/10/2013 6:56 pm
É preciso entender as redes e as ruas
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Confira trechos da entrevista com Laymert Garcia dos Santos, professor de Sociologia da Unicamp, na edição 127 de Fórum. Para ele, o conflito de classes, em escala global, começa a acontecer no meio digital
Por Glauco Faria e Igor Carvalho
“O caso Snowden é o último elo de uma cadeia que vem vindo de várias outras que já entenderam o enorme potencial das redes, de politizar as questões simplesmente pela circulação dos fluxos de informação. Por quê? Porque se o Estado e o mercado podem saber tudo sobre a população, explorando isso do ponto de vista do controle, por outro lado os movimentos também podem.” A ponderação é de Laymert Garcia dos Santos, doutor em Ciências da Informação pela Universidade de Paris VII e professor titular do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, e remete à importância de se debater o funcionamento das redes e sua relação com as ruas, algo que veio à tona com as manifestações de junho no Brasil.
Para Laymert, o advento do Wikileaks fez com que se prestasse mais atenção sobre quais informações as elites gostariam que não fossem reveladas. “O conflito de classes, em escala global, começa a acontecer nas redes, porque existe uma política de controle e hierarquização da informação nas redes, e, do outro lado, há gente trabalhando para a desobstrução dos canais”, afirma. “E isso é democracia, porque se você começa a fazer todo o fluxo de informação passar, as pessoas ficam sabendo o que os de cima não querem que elas saibam.” Confira abaixo trechos da entrevista, que está na edição 127 de Fórum.
Fórum – Dentro dessa sua ideia de entender o digital como o futuro e remetendo um pouco às manifestações. Nós tínhamos esse setor do Gil, com o Juca Ferreira, no governo Lula, que tinha esse entendimento muito claro do papel da tecnologia aliada à cultura. Mas as manifestações também não mostraram para certos setores que estão analógicos demais? Ou seja, nossos partidos de esquerda, muitos sindicatos e movimentos sociais não tratam desse tema ainda.
Laymert – Concordo plenamente com a análise que você faz, tem uma questão que para mim é complicada, a incapacidade que governos do PT tiveram em lidar com a questão da mídia. De certo modo, ela permaneceu intocada, até quando houve momentos em que alguma coisa de mais forte poderia ter sido feito, quando a Globo fez uma aposta errada no mercado financeiro e entrou em uma situação de crise. Ali havia um flanco aberto, mas o governo Lula foi lá e bancou, sem colocar condições.
Isso continua até hoje. Em parte, isso se deve ao fato de a esquerda brasileira nunca ter feito a crítica de fundo da mídia. E nem da tecnologia. A posição de esquerda de partidos, sindicatos etc. é de que os meios são neutros e tudo depende de quem se apropria dessa técnica e, portanto, quando chegar o momento de a esquerda estar no poder, se faz uma inversão de signos. Isso é o máximo que a esquerda pensou sobre essa questão, e há muitos anos venho pensando e batalhando por um outro entendimento, porque não é possível você considerar a tecnologia como algo meramente instrumental, quando ela modifica completamente todos os tipos de relação. A tecnologia, sobretudo depois da virada cibernética, mudou a vida, o trabalho e a linguagem. Ou seja, mudaram as relações. Nessas condições, se você não fizer uma crítica de fundo, vai acabar fazendo aquilo que critica em seu adversário, vai fazer isso achando que colocou um conteúdo de esquerda, mas as práticas serão as mesmas. Assim, vai ser tão manipulatório e antidemocrático quanto antes e, de certo modo, desconhecendo o próprio potencial que a tecnologia traz.
Por exemplo, voltando um pouco, há uma questão que me espantou, que mostra como se pode ao mesmo tempo estar no jogo não sabendo que se está no jogo. Nas grandes manifestações, em junho, todo mundo se volta para o Estado para ver qual será a reação deste Estado. A Dilma vai para a televisão e faz uma proposta de uma Assembleia Constituinte específica para a reforma política. Ela deu uma resposta política que era absolutamente crucial, porque respondeu a uma demanda de poder dos movimentos nas ruas, com algo que ampliava a participação em poder, já não seria o Congresso o ator principal dessa operação. E foi interessantíssimo, bastante elucidativo, porque, ao fazer essa proposta, os conservadores e a classe política inteira se mobilizaram para boicotá-la, primeiro para transformá-la em um plebiscito para que nada acontecesse. Esses setores estão no seu papel, quem não está em seu papel são os manifestantes, que pediam mais poder e, quando você tem a autoridade máxima do Estado acenando e dizendo: “Vamos nessa?”, o outro lado não responde. Não houve manifestações para isso e nem um entendimento sobre o que significava esse gesto. Ouvi gente dizendo: “Ah, mas era um cálculo político”. Não importa. As ruas emitiram um sinal, e a Dilma emitiu um outro sinal em resposta num sentido de ampliação da democracia como nunca havia acontecido. Os setores da direita imediatamente souberam ler o que estava em jogo, e os manifestantes não souberam. Por quê? Despolitização? Não souberam avaliar? O que aconteceu? Isso me fez pensar que as reivindicações do movimento são restritas, de certa maneira têm um certo fôlego, que não é muito grande, e sendo atendidas algumas reivindicações, você consegue esvaziar. De qualquer maneira, se perdeu uma oportunidade naquele momento, havia uma abertura para uma potência, que não se concretizou.
Para mim, essa perda de oportunidade diz muito sobre a leitura de campos de forças e do entendimento sobre o que é este jogo de forças. Em relação às novas tecnologias, para o PT, para os sindicatos e movimentos sociais, ainda não caiu a ficha da sua importância e que isso pode ser trabalhado de uma outra lógica, colocando em xeque políticas de controle global. O caso Snowden é o último elo de uma cadeia que vem vindo de várias outras que já entenderam o enorme potencial das redes, de politizar as questões simplesmente pela circulação dos fluxos de informação. Por quê? Porque se o Estado e o mercado podem saber tudo sobre a população, explorando isso do ponto de vista do controle, por outro lado os movimentos também podem, e isso o Wikileaks começou a fazer, a prestar atenção sobre quais informações os super-ricos querem suprimir. O conflito de classes, em escala global, começa a acontecer nas redes, porque existe uma política de controle e hierarquização da informação nas redes, e, do outro lado, há gente trabalhando para a desobstrução dos canais. E isso é democracia, porque se você começa a fazer todo o fluxo de informação passar, as pessoas ficam sabendo o que os de cima não querem que elas saibam. É o que está acontecendo com o Snowden de novo. Isso a própria tecnologia permite como a lógica de funcionamento em rede auxilia na distribuição da informação. O que as pessoas não entendem de jeito nenhum é que a informação é a diferença que faz a diferença, e também é o valor do capitalismo contemporâneo.
Quando a informação se tornou valor, e isso começou na década de 1970, a questão se colocou: “Como ganhar dinheiro com a informação?”. Porque a informação não tinha preço. Foi reelaborada e inventada uma coisa que se chama direito de propriedade intelectual, que não é só uma extensão do direito autoral e do direito de invenção da propriedade industrial, é muito mais do que isso. É o que alguns especialistas chamam de “a última enclosure”, o último cercado que começou na Inglaterra com o começo do capitalismo, quando se cercou a terra. Agora vamos criar um que vai cercar essa unidade mínima que é a diferença que faz a diferença, para garantir a exploração desse valor como unidade mínima, e, ao mesmo tempo, com um alcance global. A lógica das redes, de seu funcionamento e aperfeiçoamento, é colaborativa, e, sendo colaborativa, ela escapa, é da sua própria lógica que as informações circulem. Se não circulam é porque começam a colocar gargalos para cercar e fazer a captura dentro do sistema que permite que isso vire uma propriedade. A esquerda ainda não entendeu o alcance que isso tem como luta política. Se pegarmos, por exemplo, esse sistema anglo-americano de espionagem, porque são americanos, mas os ingleses estão acoplados, como eles chamam as primeiras operações por meio desses sistemas? Vão dar os nomes das primeiras batalhas imperialistas, tanto dos EUA quanto da Inglaterra. Por quê? Porque começou, em outro plano, um outro tipo de imperialismo, e se você não estiver preparado para lutar neste outro plano, como vai perceber o que está em jogo? Existe uma guerra, hoje, no mundo digital, mas é real também porque a dimensão virtual da realidade é tão real quanto a física. Mas a ficha ainda não caiu que esse conflito está lá, e é claro que isso precisa ser entendido, se tornar uma questão política de ponta. Ainda não vi as pessoas se mobilizando para defender o marco regulatório da internet; inclusive, se a gente fizer isso, ou vier a fazer num futuro próximo, vamos ser modelo para outros países que estão com o mesmo problema. Mas precisamos fazer.
Não se faz democracia sem informação, e a maneira de fazer democracia atualmente é expondo, para os ricos, aquilo que eles fazem para o resto da população. Se eles podem fazer tudo e levantar tudo sobre a população, e estão o tempo inteiro se protegendo e protegendo essa informação, sobretudo para destruir aquilo que não deve ser conhecido, os caras que aparecem, de certa maneira, e levantam esse movimento, mostram como essa lógica de captura funciona, estão trabalhando para uma desobstrução de canais, algo absolutamente fundamental. Só pela desobstrução de canais e por uma luta entendendo o que é a propriedade intelectual e o que é fechar a informação para uma apropriação é que você vai poder lutar no futuro, porque não se pode mais voltar para trás. Quando se observa a geração de agora, de 20 anos, eles não conseguem nem lembrar, aliás, nem conseguem saber o que é o mundo sem internet. Nós também não. Algum de nós consegue viver sem internet? Claro que não.
Fórum – Esse campo, esse fluxo das redes, já se constituiu num campo de batalha para as grandes potências, para o grande capital também, mas muita gente, inclusive da esquerda, ainda não captou isso. A gente pode dizer hoje que as redes e as novas tecnologias são essa nova expressão da luta de classes, só que ninguém enxergou ainda?
Laymert – Não é que há um determinismo tecnológico, não é essa a questão, se essas máquinas existem é porque as forças produtivas se desenvolveram a ponto de criar essas máquinas. Mas elas colocam a luta política em outro patamar, e esse outro patamar não pode mais deixar de ser levado em conta porque a luta vai se passar lá. Não só lá, mas não é possível entender as ruas hoje, no Brasil e em outros países, sem entender o binômio redes e ruas, com suas especificidades. O modo como o movimento se dá nas redes não é exatamente o mesmo que se dá nas ruas, a relação rede-rua é que tem de ser pensada junto, na sua articulação, e isso é política. Chamo isso de tecnopolítica porque não é mais possível pensar a política sem a tecnologia junto. Estamos vendo agora na política internacional, em que se discute aquilo que se passa nas redes.
Fórum – Mas ela ainda é excludente…
Laymert – Claro que é excludente, e se você quiser expandir a democracia política no país, tem de ter banda larga pra todo mundo e com preço acessível, mas tem de ser uma política de Estado. Já devia haver uma diretriz nesse sentido, porque o acesso às comunicações no Brasil é muito caro, não só a banda larga como a telefonia celular é extremamente cara para uma qualidade ruim, a relação qualidade-preço é absurda, e isso revela que existe muito caminho para ser trilhado aqui. É preciso garantir o acesso para a população, mas também trabalhar a educação digital dessas pessoas, e acho que foi isso que o Gil sacou, que podia fazer uma relação entre riqueza cultural e um povo sem acesso. O mais importante é abrir canais novos, e o potencial que a pessoa tem na periferia encontra uma maneira de realizar aquilo, não se torna só um consumidor de uma cultura que vem de cima para baixo. É uma diferença enorme. E até a dependência em relação à mídia velha vai sendo cada vez menor.
Fórum – Em relação à educação, existe também a questão do trabalho imaterial, que começa a ganhar importância; não sei se é possível isolar, mas como isso modifica a luta dos trabalhadores, dos sindicatos e como entra a questão educacional nesse sentido?
Laymert – A virada cibernética começou nos anos 1950 nos laboratórios, e nos anos 1970, as máquinas inteligentes começaram a entrar, com os computadores pessoais, em todos os setores, na vida social, na produção, em tudo. Houve uma alteração que é crescente, e cada vez mais profunda, da vida e do trabalho das pessoas, afetou o modo como se trabalhava, instaurando o que muitos chamam, inclusive, de crise da sociedade de trabalho. Porque as máquinas começaram a substituir não só a força física, como era no século XIX, com as máquinas a vapor substituindo quem fazia a força motora, mas passou a fazer todo tipo de trabalho que não é o de invenção, que a máquina não é capaz de criar ela própria. Fora esse trabalho, a substituição do trabalhador pela máquina é cada vez maior, tanto que vemos, desde que isso começou, um paradoxo enorme no qual todos os governos do mundo dizem que precisam aumentar o nível de emprego, e fomentam políticas que substituem os humanos pelas máquinas. Você diz o tempo todo que vai lutar pelo aumento do emprego e, ao mesmo tempo, implanta uma política que elimina o trabalhador e põe uma máquina no lugar dele.
Claro que não é culpa das máquinas, e sim das relações sociais, pois se elas ocupam o lugar dos humanos, eles poderiam ser liberados e preparados para fazer o trabalho que elas não podem fazer. Mas esse desenvolvimento é usado contra o trabalhador, fazendo com que antes ele fizesse uma greve por melhores condições de trabalho e depois da era cibernética, que ele pedisse pelo amor de Deus pra trabalhar. Essa mudança é o que os especialistas chamam de crise da sociedade do trabalho. Hoje a precarização é tal que você luta para manter o seu trabalho. Ao mesmo tempo, essa nova situação cria condições para que outro tipo de trabalho possa acontecer, de caráter colaborativo, escapando dessa lógica.
É necessário que os sindicatos, os trabalhadores discutam isso, quais são as positividades que podem ajudar para não transformar isso em um ludismo, uma briga contra a máquina. Por outro lado, tem de haver uma educação que já integre essa frente de transformação digital porque o mundo se transformou em algo no qual a dimensão digital é incontornável, e é preciso que a população seja educada pra isso. Qual o problema principal depois que você consegue o acesso? É que é necessário ter uma educação para que, dentro daquele fluxo gigantesco de informações, você possa ter parâmetros para discriminar a informação que vai ser boa para você. Não é só o acesso físico, se não tiver critério para se politizar dentro disso, por exemplo, você vai usar a máquina como uma televisão. Usa 1% dela, e no que ela tem de pior.
A íntegra da entrevista na edição 127 de Fórum. Nas lojas da Livraria Cultura.
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