segunda-feira, 16 de setembro de 2013

As sementes do fascismo, no século 21

As sementes do fascismo, no século 21
Para retomar acumulação, em tempos de crise, capital ensaia estratégia particular. Inclui guerras, especulação financeira máxima e criminalização das “populações excedentes”  
Por William I. Robinson | Tradução: Taís Gonzalez
Em Policing the Crisis, clássico estudo conduzido, em 1978, pelo famoso socialista e teórico cultural Stuart Hall e alguns colegas, os autores mostram que a reestruturação do capitalismo, uma resposta à crise da década de 1970 – a última grande crise mundial do capitalismo até a de 2008 –, produziu, no Reino Unido e em todo o mundo, um “estado excepcional”. Significava um processo de ruptura com os mecanismos de controle social, então consensuais, e um autoritarismo crescente. Eles escreveram:
“Este é um momento extremamente importante. Esgotado o repertório da hegemonia por meio do consentimento, destaca-se cada vez mais a tendência ao uso rotineiro das características mais repressivas do Estado. Aqui, o pêndulo no exercício da hegemonia inclina-se, de forma decisiva. De um período em que consentimento suplantava a coerção, passa-se a outro em que a coerção volta a ser a forma natural e rotineira de assegurar o consentimento. Esse deslocamento interno do pêndulo da hegemonia – de consentimento para coerção – é uma resposta do Estado à crescente polarização (real e imaginária) das forças de classes. É, exatamente assim, que uma “crise de hegemonia” se expressa… O lento desenvolvimento de um estado de coerção legítimo, o nascimento de uma sociedade de “lei e ordem”… Todo teor da vida social e política é transformado (neste momento). Um novo ambiente ideológico, claramente distinto, é urdido. (Policing the Crisis, pp. 320-321).”
Esta é também uma descrição exata da atual conjuntura. Estamos testemunhando a transição de um estado de bem-estar social para um estado de controle social, em todo o mundo. Estamos diante de uma crise global sem precedentes, dada sua magnitude, seu alcance global, a extensão da degradação ambiental e da deterioração social e a escala dos meios de violência. Nós realmente estamos enfrentando uma crise da humanidade, entramos em um período de grandes agitações, de mudanças e incertezas. E esta crise é distinta dos episódios anteriores de crises mundiais – a de 1930 ou a de 1970 – precisamente porque o capitalismo mundial é fundamentalmente distinto, no início do século 21.
Entre as transformações qualitativas que ocorreram no sistema capitalista, em face da globalização das últimas décadas, há quatro que quero destacar. A primeira é a ascensão do capital transnacional e a integração de todos os países dentro de um novo sistema financeiro de produção globalizada. A segunda é o surgimento de uma nova Classe Capitalista Transnacional (TCC, sigla em inglês para Transnational Capitalist Class). Este grupo apoia-se em novos circuitos globais de acumulação, ao invés dos velhos circuitos nacionais; A terceira transformação é a ascensão da que eu chamo de aparatos estatais transnacionais. A quarta, o aparecimento de novas relações de desigualdade e dominação na sociedade global, incluindo a crescente importância das desigualdades sociais e de classe, relacionadas aos desequilíbrios Norte-Sul.
A atual crise
A crise atual combina aspectos estruturais similares aos das crises anteriores (dos anos 1970 e 1930) com características únicas, a saber:
- O sistema está atingindo rapidamente os limites ecológicos de sua produção. Já temos vários cientistas ambientais que fazem referência ao “ponto de inflexão”. Esta dimensão não pode ser subestimada;
- O magnitude brutal da violência e do controle social, bem como a extensão do controle sobre os meios de comunicação globais e de produção e circulação de símbolos e imagens. Neste sentido, nós somos testemunhas de novos e assustadores sistemas de controle social e repressão que precisamos analisar e aos quais devemos resistir;
- Estamos chegando ao limite da expansão do capitalismo – ou seja, não há mais novos territórios significativos a serem integrados ao sistema. A desruralização já é bem avançada; a mercantilização do campo e dos espaços pré e não-capitalista são intensas;
- O surgimento de uma população “excedente” que habita um “planeta de favelas“, afastada da economia produtiva, jogada às margens e sujeita a sofisticados sistemas de controle social e à destruição – a um ciclo mortal de expropriação, exploração e exclusão.
- O descolamento entre economia globalizada e um sistema de estados-nações baseado em uma política autoritária. Os aparatos estatais transnacionais são incipientes. Eles não foram capazes de desempenhar o papel que os estudiosos do sistema capitalista mundial designam por “hegemon”, ou um estado-nação líder com poder e autoridade suficientes para organizar e estabilizar o sistema.
Neste contexto, vamos rever como a atual crise se desenvolveu. O capital transnacional emergente passou por uma grande expansão nas décadas de 1980 e 1990. Isto envolveu o que poderíamos chamar de hiper-acumulação, alcançada por meio de uma série de fatores. Envolve a introdução de novas tecnologias, sobretudo da informatização e da utilização da internet; políticas neoliberais que abriram o mundo para o capital transnacional; novas modalidades de mobilização e exploração da força de trabalho global, com novo ciclo de “acumulação primitiva” maciça – a expulsão e deslocamento de centenas de milhões de pessoas, especialmente das áreas rurais do terceiro mundo, que se tornaram migrantes nacionais e transnacionais.
Mas no final da década de 1990, a estagnação instalou-se na economia global. O sistema enfrentava novamente uma crise. A nítida polarização social global e as desigualdades crescentes em todo o mundo alimentavam o problema crônico da “sobre-acumulação”. Muito simples, as desigualdades globais e o empobrecimento de uma ampla parcela da sociedade significam que o capital transnacional não pode encontrar saídas produtivas para descarregar as enormes quantidades de excedentes que acumulou. No início do século 21, a Classe Capitalista Transnacional procurou enfrentar a estagnação e a sobre-acumulação por meio de diversos mecanismos.
Um desses mecanismos é o que chamo de acumulação militarizada. Trata-se de fazer guerras e realizar intervenções que desencadeiam ciclos de destruição e reconstrução, além de gerar enormes lucros para um, cada vez maior, “complexo financeiro-militar-prisional-industrial-de energia-e-segurança”. Estamos vivendo agora em uma economia global de guerra, que vai além de “guerras quentes” como a do Iraque, do Afeganistão ou da Síria. Outro mecanismo é a invasão e saque dos orçamentos públicos. A Classe Capitalista Transnacional usa seu poder financeiro para assumir o controle das finanças do Estado e impor mais “austeridade” à maioria dos trabalhadores. Emprega seu poder estrutural (por controlar a economia global) para acelerar o desmantelamento do que ainda resta do salário social e do estado de bem-estar. E o terceiro mecanismo é a frenética especulação financeira em todo mundo – transformando a economia global em um gigantesco cassino. A TCC descarregou trilhões de dólares em especulação imobiliária, em alimentos, energia, mercados dos commodities globais, em mercados de títulos em todo o mundo (ou seja, nos orçamentos públicos e nas finanças estatais), e em outros tantos setores e seus derivados.
A ameaça do “fascismo do século 21″
Como as forças políticas e sociais em todo o mundo estão respondendo à crise? Ela resultou em uma rápida polarização na sociedade global. Forças de direita e de esquerda estão em ascensão. Entre outros, quero destacar três respostas para a crise que parecem estar em disputa.
Uma delas é o que poderíamos chamar de “reformismo de cima”. Este reformismo tem como finalidade estabilizar o sistema, salvando-o de si mesmo e de alternativas mais radicais, vindas de baixo. No entanto, nos anos que se seguiram ao colapso do sistema financeiro global de 2008, parece que esses reformadores não tiveram a capacidade (ou a vontade), de prevalecer sobre o poder do capital financeiro transnacional. Uma segunda resposta é a resistência popular e de esquerda, a partir de baixo. À medida em que conflitos sociais e políticos eclodem em todo o mundo, parece surgir uma revolta global organizada. Embora essa resistência pareça insurgir-se após 2008, ela ocorre de modo bastante desigual, nos distintos países e regiões e enfrenta muitos problemas e desafios.
A última resposta é a que eu chamo de fascismo do século 21. A ultra-direita é uma força emergente em muitos países. Em linhas gerais, busca-se fundir o poder político reacionário com o capital transnacional e organizar uma base de massas entre os setores historicamente privilegiados da classe trabalhadora mundial – como os trabalhadores brancos, no Norte do planeta e as velhas classes médias do Sul. Elas vivem hoje sensação de insegurança agravada, temerosas de mobilidade social decrescente, ou mudança de status. São tentadas ao militarismo, masculinização extrema, homofobia, racismo e uma mobilização racista contra bodes expiatórios — o que inclui a própria busca de bodes expiatórios, como os imigrantes e, no Ocidente, os muçulmanos. O fascismo do século 21 evoca ideologias mistificadoras, muitas vezes envolvendo supremacia racial e ou cultural e xenofobia. Abraçam um passado idealizado e mítico. A cultura neofascista banaliza e exalta a guerra e a violência social. Procura gerar fascínio pela dominação, ao retratá-la como heroica.
É importante salientar que a necessidade dos grupos dominantes em todo o mundo, para garantir segurança e organizar o controle social em massa sobre a população excedente e as forças rebeldes, dá um impulso poderoso a projetos de fascismo neste século. Simplificando, as imensas desigualdades estruturais da economia política global não podem ser facilmente contidas por meio de mecanismos consensuais de controle social – ou seja, por meio de dominação hegemônica. Com isto em mente, vamos concluir com cinco pontos para o debate futuro sobre sobre o capitalismo global policiante.
Um estado policial global
Primeiro, um capitalismo global policiante, por meio de novas modalidades de controle social globalizado e repressão não é apenas um projeto desse fascismo do século 21. Na verdade, ele está sendo antecipado pelas elites e Estados liberais e reformistas. É um imperativo estrutural do capitalismo globalizado, ligado aos imperativos de manutenção do sistema.
Segundo, ao pensamento sobre o capitalismo global policiante, devemos nos perguntar quem precisa ser policiado, no sistema. Aqui, quero chamar a atenção para a crescente onda de mão de obra excedente. Ao invés de incorporar os marginalizados, o sistema tenta isolar e neutralizar suas reais ou potenciais rebeliões, criminalizando o pobre e despossuído – com tendências, em certos casos, para o genocídio. Os mecanismos de exclusão coerciva incluem a detenção maciça em complexos industriais-prisionais (Prison-Industrial Complex ou PIC, o termo em inglês é usado para atribuir a rápida expansão da população carcerária dos EUA que influência as políticas das empresas de privatização de cárceres e empresas que fornecem bens e serviços para agências de prisão do governo); o policiamento generalizado, leis repressivas anti-imigrantes; novas formas de manipulação de espaços, para que tanto os condomínios murados quanto guetos sejam controlados por verdadeiros exércitos de segurança privada e vigilância de alta tecnologia; campanhas ideológicas voltadas à sedução; passividade por meio do consumo e da fantasia.
Novas formas de controle social e modalidades de dominação ideológicas cruzam barreiras. Por isso, pode haver um neo-fascismo constitucional e normalizado, com instituições de representação, partidos políticos e eleições formais, enquanto o sistema político é rigidamente controlado pelo capital transnacional e seus representantes. Qualquer divergência que ameace o sistema é neutralizada, quando não liquidada.
Em terceiro lugar, devemos reconhecer que a criminalização e o controle militarizado de estruturas marginalizadas, como mecanismo de contenção preventiva, são altamente racializados. Isso nos traz de volta para Stuart Hall e seus colegas. Os autores de Policing the Crisis destacaram a natureza altamente racializada do policiamento e da criminalização de comunidades negras e imigrantes no Reino Unido. Eles desconstruíram o processo ideológico complexo de fabricar a criminalização dos oprimidos como uma função do controle social, em momentos de crises de hegemonia.
Aqui vemos fortes paralelos entre o embrionário “Estado excepcional” na década de 1970 e a atual deriva para tais Estados, nos EUA e em outros países. O deslocamento das ansiedades sociais para o crime e populações racialmente criminalizadas origina-se na crise dos 1970. Nos EUA, após as rebeliões de massa da década anterior, os grupos dominantes promoveram campanhas culturais e ideológicas sistemáticas de “lei e ordem” para legitimar a mudança de um Estado de bem-estar social para um Estado de controle e a ascensão de um complexo industrial-prisional.
“Lei e ordem” passou a significar a reconstrução e reforço das hierarquias raciais, sociais e da ordem hegemônica, após as rebeliões de 1960. Isso coincidiu com a reestruturação econômica global, o neoliberalismo e a globalização capitalista da década de 70 e anos posteriores. Agora, a criminalização ajuda a deslocar as ansiedades sociais, decorrentes da crise estrutural da estabilidade, segurança e organização social, geradas pela crise atual. Em seu chocante livro, The New Jim Crow, a jurista Michelle Alexander revela que o encarceramento em massa, nos EUA, é “como um sistema incrivelmente abrangente e bem disfarçado de controle social racializado”.
De fato, a natureza racializada das “guerras contra as drogas” hipócritas, dos encarceramentos em massa e das sentenças de morte social proferidas é tão cruel que choca os sentidos. Em uma abstração analítica, os encarceramentos em massa tomam lugar dos campos de concentração. O sistema submete uma população excedente de milhões, potencialmente rebeldes, a um aprisionamento sob violência estatal. As chamadas (e declaradas) “guerra contra as drogas” e “guerra contra o terrorismo”, bem como as não declaradas “guerra contra a juventude pobre” e a “guerra contra os imigrantes”, precisam ser colocadas neste contexto.
Em quarto lugar, em seu brilhante e ainda assustador estudo “Cities under Siege: The New Military Urbanism” ["Cidadas sitiadas: o novo Urbanismo Militar], Stephen Graham mostra como estruturas e processos de controle controle social militarizado constituem um projeto glogal que é, por definição, transnacional. É importante notar que cada país enredou-se no policiamento da crise global, assim como da economia global torna-se cada vez mais imbricada com o negócio da guerra, violência social e coerção e repressão estatal organizadas.
Quinto e último ponto: a militarização e a violência organizada tonaram-se estratégias de acumulação, independente de qualquer objetivo político, e aparecem como características estruturais do novo capitalismo global. Guerras, sistemas de encarceramento em massa, militarização das fronteiras, detenção de imigrantes, desenvolvimento de sistemas de vigilância globais – e assim por diante – são imensamente rentáveis para a economia corporativa global, para as multinacionais, os banqueiros transnacionais, investidores e especuladores. As forças populares de base devem estar conscientes da ameaça enfrentam, mas há necessidade de uma mudança fundamental no poder e nas relações de propriedades do capitalismo global, se queremos atingir a paz e a justiça.
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As ideias deste ensaio serão desenvolvidas em detalhe no livro Global Capitalism, Global Crisis, a ser publicado em 2014 pela Cambridge University Press. Este texto baseia-se numa fala à Conferẽncia sobre Poder e Justiça, em Nova York

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