Occupying Wall Street: Places and Spaces of Political Action : Places: Design Observer
terça-feira, 30 de julho de 2013
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domingo, 14 de julho de 2013
sábado, 13 de julho de 2013
sexta-feira, 12 de julho de 2013
NINJA responde no Facebook nota de jornalista do Estadao, veja aqui - Blue Bus
NINJA responde no Facebook nota de jornalista do Estadao, veja aqui - Blue Bus
MÍDIA MÁRTIR
Sobre a terceira parte da sigla, a Açao, nao vou elaborar muito e me ater a um trecho particularmente triste no comentário do colega. “Ninja é, acima de tudo, o cara que ganha piso de 3 paus para fazer tudo isso. Filmar tudo com o celular e transmitir na internet, sem ganhar nada por isso, é brincadeira”
Por fim, quero dizer que concordaria com 100% do que disse Artur. Desde que ele trocasse a palavra “Ninja” por “Mártir”.
Nada contra. Há um carma, uma vocaçao, até um papel importante para os que enxergam no martírio uma virtude. Mas nao é pelo sacrifício (sempre presente) de nosso trabalho que saímos de casa. É pela parte empolgante, pela aventura e pela felicidade de tentar criar uma forma nova de fazer jornalismo. E de, inclusive, buscar formas de financiar jornalismo sem patrocínio e anúncios privados ou públicos. Nas próximas semanas, inclusive, vamos apresentar 1 site e 4 modelos diferentes para tentar estreitar a ponte de recursos e ideias entre produtores e consumidores de informaçao. Sem intermediários.
NINJA responde no Facebook nota de jornalista do Estadao, veja aqui
Em nota, jornalista desmerece trabalho da Mídia NINJA, que acompanha as manifestaçoes brs diretamente da rua, dando uma visao horizontal dos fatos para quem está de fora. NINJA publicou ontem sua réplica no Facebook, veja:MÍDIA MÁRTIR
No fim de semana, Artur Rodrigues, um jornalista do Estado de S. Paulo escreveu o seguinte parágrafo se referindo à cobertura da Mídia Ninja:“Ninja é o cara que acorda de madrugada pra falar com mulher de preso na fila da visita, o que abre cem bueiros com pé de cabra para ver se estao limpos, o que pega 10 viroses por ano para ver se tem maca nos corredores dos hospitais, o que faz 30 ligaçoes por dia para descobrir que um político está usando aviao da FAB para viagem particular, o que toma tiro no olho para fazer a imagem, o que passa dias recontando os dados de homicídios e desmascarar a maquiagem do poder público, o que é obrigado a ir no enterro de uma criança assassinada. Ninja é, acima de tudo, o cara que ganha piso de 3 paus para fazer tudo isso. Filmar tudo com o celular e transmitir na internet, sem ganhar nada por isso, é brincadeira”
Só faltou dizer que para ser Ninja de verdade precisa ter diploma… Mas nao é o caso de zombar do ataque desqualificador do colega. Apenas ler com mais atençao.Ele parece nao saber que antes de ser uma metáfora, Ninja é uma sigla. Narrativas Independentes, Jornalismo e Açao. Sobre a primeira parte, a tal independencia narrativa, um repórter do Estadao nao pode se gabar. Entendo e valorizo de verdade o apuro, a dedicaçao as viroses que ele exalta contrair. Mas, em geral, o material uma vez editado, contextualizado por seus publishers, costuma servir para reforçar uma versao de sociedade contrária aos valores humanistas que nosso herói ostenta em seu post.
Generalizo? Um pouco. Mas nem tanto… que liberdade Artur tem para questionar, publicamente, o editorial de seu veículo que pedia sangue, violência policial contra os manifestantes naquela fatídica quinta 13, quando jornalistas como ele (Se ele estivesse na rua. Nao sei se estava) apanharam como meros paulistanos indignados? Poderá o ímpeto perdigueiro de Artur investigar a fundo as contas e falcatruas de aliados políticos de seus empregadores? Poderá Artur apresentar ao público, depois de 30 telefonemas, o real teor das reformas das leis de meios de comunicaçao que vêm sendo propostas há anos?Sobre a segunda parte, o Jornalismo… Nao há dúvida. Seu ofício merece esse nome. Investigar, apurar, ter paciência e saúde para honrar a tarefa de ser um olho público. Mas entao fica a dica para Artur: faça esse trabalho antes de avacalhar o trabalho da Mídia Ninja. Ou seja: dê um de seus tantos telefonemas e descubra que horas estamos acordando. Quantas horas estamos dormindo. Como estamos financiando nosso trabalho. Os riscos e as reais agressoes que viemos sofrendo nas últimas semanas. E quais as motivaçoes, fora dinheiro, estao nos movendo para as ruas. O próprio jornal onde ele trabalha tem jornalista desse tipo, aliás. No domingo passado, uma matéria de contracapa do caderno… Aliás… buscou conhecer mais sobre nossa rede.
Sobre a terceira parte da sigla, a Açao, nao vou elaborar muito e me ater a um trecho particularmente triste no comentário do colega. “Ninja é, acima de tudo, o cara que ganha piso de 3 paus para fazer tudo isso. Filmar tudo com o celular e transmitir na internet, sem ganhar nada por isso, é brincadeira”
Seu sentimento de auto-importância, ainda comum entre sobreviventes de redaçoes (Ficaralho, alguém?) o faz encarar a falta de remuneraçao como um demérito. E a baixa remuneraçao como prova de que o Ninja, no fundo, é ele.Isso encerra de fato a discussao. Nao é que ele se conforma… mas exalta a conformaçao a um mercado precarizado, injusto e que nao dá o devido valor a quem o executa na base. Sem perceber, vira um escudo humano para críticas ao modelo corporativo e comercial. O mesmo modelo falido que, mês a mês, demite mais e mais de seus colegas. E que confunde, em um abraço de afogado, jornal com jornalismo.
Por fim, quero dizer que concordaria com 100% do que disse Artur. Desde que ele trocasse a palavra “Ninja” por “Mártir”.
Nada contra. Há um carma, uma vocaçao, até um papel importante para os que enxergam no martírio uma virtude. Mas nao é pelo sacrifício (sempre presente) de nosso trabalho que saímos de casa. É pela parte empolgante, pela aventura e pela felicidade de tentar criar uma forma nova de fazer jornalismo. E de, inclusive, buscar formas de financiar jornalismo sem patrocínio e anúncios privados ou públicos. Nas próximas semanas, inclusive, vamos apresentar 1 site e 4 modelos diferentes para tentar estreitar a ponte de recursos e ideias entre produtores e consumidores de informaçao. Sem intermediários.
Se há colegas, como Artur, que acham isso uma brincadeira, sem problemas. Nao me ofende nem um pouco. Mas que eles tenham entao a humildade de admitir que muita gente está fazendo brincando o que muitos nao estao conseguindo fazer profissionalmente.Jamille Bringuenti
Is the Egyptian Revolution Dead?
Is the Egyptian Revolution Dead?
by beloved friend Philip Rizk via Pablo de Soto (facebook)
The final excerpt:
Today we are still in the midst of the January 25 Revolution. We face a serious threat of its co-optation but until now the power still lies with the people. In order to fight on we must both remember the past as well as see our immediate situation in light of the global power constellation.
We are not alone.
Despite the different contexts across Brazil, Turkey, and Chile, as in Greece, Spain, Portugal, and the United States, people are taking to the street to stand in the way of the rule of local elites by the logic of the longevity of their power and the increase of a minorities’ wealth. Seeing all these revolutionary moments within one frame means that with or without democracy, with or without elections, popular rule is moving to the street and out of institutions and government offices. As Max Weber wrote, representation is a “structure of domination,” and thus we maintain the revolution’s cry, “the people want the fall of the system.”
We are at a global turning point.
We must fight on.
by beloved friend Philip Rizk via Pablo de Soto (facebook)
The final excerpt:
Today we are still in the midst of the January 25 Revolution. We face a serious threat of its co-optation but until now the power still lies with the people. In order to fight on we must both remember the past as well as see our immediate situation in light of the global power constellation.
We are not alone.
Despite the different contexts across Brazil, Turkey, and Chile, as in Greece, Spain, Portugal, and the United States, people are taking to the street to stand in the way of the rule of local elites by the logic of the longevity of their power and the increase of a minorities’ wealth. Seeing all these revolutionary moments within one frame means that with or without democracy, with or without elections, popular rule is moving to the street and out of institutions and government offices. As Max Weber wrote, representation is a “structure of domination,” and thus we maintain the revolution’s cry, “the people want the fall of the system.”
We are at a global turning point.
We must fight on.
quinta-feira, 11 de julho de 2013
Democracia ou desordem? As quatro lições da Primavera Árabe - BBC Brasil - Notícias
Democracia ou desordem? As quatro lições da Primavera Árabe - BBC Brasil - Notícias
Nenhum dos dois argumentos, no entanto, sobrevivem diante de uma análise mais criteriosa dos fatos.
É evidente que aqueles dias empolgantes de 2011 – quando os árabes tomaram as ruas e depuseram três ditadores – se transformaram agora em uma memória distante.
Muitos dos que participaram dos protestos há dois anos agora estão profundamente desiludidos. Suas vidas não melhoraram e, em muitos casos, pioraram.
Mas é necessário questionar o que deu errado, e tirar as lições corretas.
A primeira lição é que a Primavera Árabe é um processo, e não um evento. Nunca ninguém poderia imaginar que os governantes árabes, e as elites que os sustentavam, um dia cairiam ou morreriam.
O papel do Ocidente sempre foi ambivalente. Ele sempre esteve nos dois lados – ansioso por encorajar as novas democracias, mas sem derrubar as velhas autocracias.
Em sociedades em que os movimentos democráticos eram suprimidos há muito tempo, não se pode esperar que a tolerância, o pluralismo e os direitos humanos aflorem do dia para noite.
Isso sempre será, nessa região, um longa luta geracional.
Na Tunísia, as forças armadas abandonaram o ditador - e, em seguida, saíram do cenário político.
No Egito, ocorreu o oposto. Por duas vezes, após protestos em massa, o Exército interveio e retirou um ditador do poder.
Mas ao assumirem o controle do país, os militares foram inábeis. A noção de que as Forças Armadas poderiam ser um instrumento para a democracia sempre foi suspeita.
Na Líbia – até agora um caso excepcional -, foi uma intervenção do Ocidente que virou o jogo, selando o destino do ditador Muammar Kadhafi.
Na Síria, o Ocidente está – com razão – relutante a agir, deixando para as forças locais e regionais resolver o conflito.
Não há um padrão fixo e, por isso, não há resultados uniformes.
Na Tunísia, eles entenderam que não poderiam governar sozinhos.
Já os muçulmanos egípcios cometeram o erro de se livrar brutalmente de seus oponentes.
Por outro lado, incapazes de se livrarem de uma paranoia enraizada, eles tendem a ver todos os opositores como conspiradores.
E, fatalmente, subestimaram o poder dos militares.
Mas é um erro achar que, regionalmente, os muçulmanos estão recuando. Eles estão na defensiva, mas longe de serem vencidos.
A questão é qual lição eles vão tirar dos eventos recentes.
Alguns muçulmanos egípcios podem chegar à conclusão de que não podem culpar os outros pelo próprio destino: afinal, tiveram sua chance de exercer o poder, mas perderam essa oportunidade.
Outros, no Egito, na Síria ou em outros locais, podem argumentar que a democracia não leva a nada, e que apenas por meio da violência podem alcançar a utopia islâmica.
A ideia do empoderamento popular criou raízes, alimentada pela TV por satélite e pelas mídias sociais. E nenhum país está imune a isso.
A Primavera Árabe pode não ter alterado o balanço de poder regional, mas derrubou as expectativas populares.
É uma revolução na mente.
Mas a dura lição é que, por si só, o poder popular não é suficiente.
O desafio a longo prazo é traduzir o protesto popular e o ódio do povo em uma mudança real e duradoura.
Se isso não acontecer, a promessa da Primavera Árabe não será concretizada.
* Roger Hardy é autor do livro 'A Revolta Muçulmana: uma Jornada pelo Islã Político' (2010). Ele é professor associado nas universidades London School of Economics e King's College, em Londres.
Alguns analistas estão dizendo que tudo não passou de
uma ilusão, que a Primavera Árabe - que parecia ser o prenúncio da
democracia – não trouxe nada além de desordem.
Outros vão ainda mais longe e argumentam que
árabes, ou muçulmanos, estão presos ao sectarianismo e à intolerância e
que, por isso, são incapazes de promover a democracia.Nenhum dos dois argumentos, no entanto, sobrevivem diante de uma análise mais criteriosa dos fatos.
É evidente que aqueles dias empolgantes de 2011 – quando os árabes tomaram as ruas e depuseram três ditadores – se transformaram agora em uma memória distante.
Muitos dos que participaram dos protestos há dois anos agora estão profundamente desiludidos. Suas vidas não melhoraram e, em muitos casos, pioraram.
Mas é necessário questionar o que deu errado, e tirar as lições corretas.
1. Nunca será fácil e rápido
A primeira lição é que a Primavera Árabe é um processo, e não um evento. Nunca ninguém poderia imaginar que os governantes árabes, e as elites que os sustentavam, um dia cairiam ou morreriam.
O papel do Ocidente sempre foi ambivalente. Ele sempre esteve nos dois lados – ansioso por encorajar as novas democracias, mas sem derrubar as velhas autocracias.
Em sociedades em que os movimentos democráticos eram suprimidos há muito tempo, não se pode esperar que a tolerância, o pluralismo e os direitos humanos aflorem do dia para noite.
Isso sempre será, nessa região, um longa luta geracional.
2. Não há um padrão único
A segunda lição - bastante óbvia mediante um rápido retrospecto - é que circunstâncias diferentes produzem resultados diferentes.Na Tunísia, as forças armadas abandonaram o ditador - e, em seguida, saíram do cenário político.
No Egito, ocorreu o oposto. Por duas vezes, após protestos em massa, o Exército interveio e retirou um ditador do poder.
Mas ao assumirem o controle do país, os militares foram inábeis. A noção de que as Forças Armadas poderiam ser um instrumento para a democracia sempre foi suspeita.
Na Líbia – até agora um caso excepcional -, foi uma intervenção do Ocidente que virou o jogo, selando o destino do ditador Muammar Kadhafi.
Na Síria, o Ocidente está – com razão – relutante a agir, deixando para as forças locais e regionais resolver o conflito.
Não há um padrão fixo e, por isso, não há resultados uniformes.
3. Os muçulmanos estão em uma encruzilhada
Em toda a região, os muçulmanos puderam experimentar o que é ter poder, mas o usaram de formas diferentes.Na Tunísia, eles entenderam que não poderiam governar sozinhos.
Já os muçulmanos egípcios cometeram o erro de se livrar brutalmente de seus oponentes.
Por outro lado, incapazes de se livrarem de uma paranoia enraizada, eles tendem a ver todos os opositores como conspiradores.
E, fatalmente, subestimaram o poder dos militares.
Mas é um erro achar que, regionalmente, os muçulmanos estão recuando. Eles estão na defensiva, mas longe de serem vencidos.
A questão é qual lição eles vão tirar dos eventos recentes.
Alguns muçulmanos egípcios podem chegar à conclusão de que não podem culpar os outros pelo próprio destino: afinal, tiveram sua chance de exercer o poder, mas perderam essa oportunidade.
Outros, no Egito, na Síria ou em outros locais, podem argumentar que a democracia não leva a nada, e que apenas por meio da violência podem alcançar a utopia islâmica.
4. O poder do povo não é suficiente
Por último, as revoltas árabes mostraram o poder, e também as limitações, dos protestos em massa.A ideia do empoderamento popular criou raízes, alimentada pela TV por satélite e pelas mídias sociais. E nenhum país está imune a isso.
A Primavera Árabe pode não ter alterado o balanço de poder regional, mas derrubou as expectativas populares.
É uma revolução na mente.
Mas a dura lição é que, por si só, o poder popular não é suficiente.
O desafio a longo prazo é traduzir o protesto popular e o ódio do povo em uma mudança real e duradoura.
Se isso não acontecer, a promessa da Primavera Árabe não será concretizada.
* Roger Hardy é autor do livro 'A Revolta Muçulmana: uma Jornada pelo Islã Político' (2010). Ele é professor associado nas universidades London School of Economics e King's College, em Londres.
segunda-feira, 8 de julho de 2013
domingo, 7 de julho de 2013
28/06/2013 Por Pilatti, Negri, Cocco “Os protestos parecem inventar novas formas de luta. O poder constituinte está aí e, neste aqui e agora, se apresenta como incontornável, mas também vulnerável a aventuras reacionárias”Levante da multidão |
Levante da multidão |
“Os protestos parecem inventar novas formas de luta. O poder constituinte está aí e, neste aqui e agora, se apresenta como incontornável, mas também vulnerável a aventuras reacionárias”
Os acontecimentos dos últimos dias, no Brasil, surpreenderam todos, em todos os horizontes políticos, internos e externos. O Brasil parecia o país sul-americano mais estável e, de repente, “a terra entrou em transe”. Independentemente dos desdobramentos futuros, a multidão mostrou sua potência. À direita e à esquerda se disse, com escândalo, que o movimento não tem “organicidade”, nem “linha”, nem “lideranças”. Até a esquerda dita radical teve de constatar que não há bandeiras abstratas que possam ser impostas, “de fora para dentro”, ao magma que se constitui a partir “de baixo”. “Como isso é possível? Como ousam?” Mas o movimento continua, passou a ser difuso, acelerando seus ritmos: nos centros e periferias, nas grandes e pequenas cidades, nas favelas e no asfalto, multiplicando as reivindicações.
Os acontecimentos dos últimos dias, no Brasil, surpreenderam todos, em todos os horizontes políticos, internos e externos. O Brasil parecia o país sul-americano mais estável e, de repente, “a terra entrou em transe”. Independentemente dos desdobramentos futuros, a multidão mostrou sua potência. À direita e à esquerda se disse, com escândalo, que o movimento não tem “organicidade”, nem “linha”, nem “lideranças”. Até a esquerda dita radical teve de constatar que não há bandeiras abstratas que possam ser impostas, “de fora para dentro”, ao magma que se constitui a partir “de baixo”. “Como isso é possível? Como ousam?” Mas o movimento continua, passou a ser difuso, acelerando seus ritmos: nos centros e periferias, nas grandes e pequenas cidades, nas favelas e no asfalto, multiplicando as reivindicações.
Busca Avançada
28/06/2013
“Os protestos parecem inventar novas formas de luta. O poder constituinte está aí e, neste aqui e agora, se apresenta como incontornável, mas também vulnerável a aventuras reacionárias”
Por Adriano Pilatti, Antonio Negri e Giuseppe Cocco, no Valor
Os acontecimentos dos últimos dias, no Brasil, surpreenderam todos, em todos os horizontes políticos, internos e externos. O Brasil parecia o país sul-americano mais estável e, de repente, “a terra entrou em transe”. Independentemente dos desdobramentos futuros, a multidão mostrou sua potência. À direita e à esquerda se disse, com escândalo, que o movimento não tem “organicidade”, nem “linha”, nem “lideranças”. Até a esquerda dita radical teve de constatar que não há bandeiras abstratas que possam ser impostas, “de fora para dentro”, ao magma que se constitui a partir “de baixo”. “Como isso é possível? Como ousam?” Mas o movimento continua, passou a ser difuso, acelerando seus ritmos: nos centros e periferias, nas grandes e pequenas cidades, nas favelas e no asfalto, multiplicando as reivindicações.
Os protestos parecem inventar novas formas de luta. O poder constituinte está aí e, neste aqui e agora, se apresenta como incontornável, mas também vulnerável a aventuras reacionárias. Como organizar o pensamento diante dessa aceleração do tempo e dessa inovação radical? Como aproveitar as aberturas e evitar ou combater as ameaças?
Voltemos um pouco atrás. Em 2005 lançamos dois livros no Brasil: “Multidão” e “GlobAL”. Em “Multidão” dizíamos que o trabalho passava a ser explorado fora das fábricas, sem passar pela relação salarial. Se isso implica perda de direitos pela maior fragmentação e precariedade da relação salarial, ao mesmo tempo só pode funcionar se a autonomia do trabalho aumenta e se produz e reproduz dentro e pelas redes. Ou seja, por um lado, o capital desconstrói a classe trabalhadora em um sem-número de fragmentos; pelo outro, por trás dos fragmentos, há singularidades que podem cooperar entre si e perseverar como tais.
No capitalismo contemporâneo, a exploração é exatamente o fato dos agenciamentos subjetivos dos desejos (cognitivos, culturais, institucionais, empresariais) fixarem os “fragmentos” sem se abrir às modulações das singularidades. A multidão da qual falamos não se confunde com a definição sociológica e determinista do devir “líquido” da sociedade pós-moderna. Ao contrário, a multidão é um conceito, político e ontológico, de classe: a classe que se constitui nessa cooperação entre singularidades. Só há multidão quando ela se faz a si mesma, como ocorre neste momento no Brasil. É o contrário da massa dos fragmentos que mídia e direita querem fundir ao entoar o Hino Nacional.
Já em “GlobAL” saudávamos a chegada dos novos governos na América do Sul (sem dedicar uma palavra à Venezuela) e, ao mesmo tempo, dizíamos que eles deveriam ter dois cuidados: primeiro, não cair na ilusão de que haveria novo modelo a ser implementado; segundo, que as oscilações entre inflação dos juros e aquelas dos preços são apenas as duas faces da falta de democracia e essa depende das dimensões biopolíticas das lutas: as lutas pela vida e da vida dos pobres, que persistem diante do terror que o Estado impõe às favelas e às periferias. O livro passou despercebido. Os intelectuais críticos ao governo teorizavam o “Estado de exceção” e aqueles próximos do PT preferiam ver em Lula a incrível reencarnação de Vargas. Depois da crise global, o governo entrou nessa de achar que o desenvolvimentismo era o novo (sic) modelo.
Foi bem no meio dessa festa VIP que a terra tremeu. À direita, o governador de São Paulo usou a violência sem máscaras da polícia. À esquerda, o ministro da Justiça se propôs a mandar mais polícia ainda e bater mais. Quando tiveram que recuar, direita e esquerda apareceram juntas, com a diferença da cor das gravatas, para dizer que a redução do preço das passagens acarretaria o corte de outros gastos sociais. À direita e à esquerda se jogou lenha na fogueira da crise da representação, continuou-se a pensar a política do estranho ponto de vista do fisiologismo e da tecnocracia.
Desde segunda-feira, a elite e sua mídia corporativa trocaram o alvo de suas armas e passaram a usar seu poder concentrado (antidemocrático) para tentar manipular a comoção nacional num sentido reacionário. Pudemos ouvir, na quinta-feira (dia 20) em meio à repressão de milhares de manifestantes, a ideia de usar o Congresso para aplicar ao Brasil o golpe institucional já desfechado em Honduras e no Paraguai. Mas a presidente começou a reagir, embora de maneira tardia e tímida, propondo um plebiscito e uma “constituinte”.
Acontece que a teoria do poder constituinte e sua realidade (aquela que está abertamente nas ruas do Brasil inteiro) é uma teoria da democracia radical. Não é contra a representação, mas contra a separação dessa de sua fonte: a soberania popular. A corrupção está ali, nessa separação dos meios e dos fins, e quem se aproveita dela são aqueles que concentram os meios econômicos e a mídia, inclusive quando a condenam, de maneira moralista, apenas para aumentá-la em seu favor.
Avaliamos positivamente, em seu conjunto, as iniciativas de Dilma, mas pensamos que a solução não passa nem por um plebiscito nem pela convocação de pactos com supostos representantes dos movimentos (aliás, sempre os mesmos “patrocinados”). O desafio é abrir um verdadeiro “processo constituinte”, ou seja, abrir a pólis à participação efetiva do “demos”, nas ruas e além – mesmo que confusa em um primeiro momento – para unir mobilização e invenção de novas institucionalidades, de novas caras. Se o governo e o PT acharem que poderão evitar essa abertura pela mobilização de supostos representantes de casas e circuitos, repetirão o mesmo erro que fez Haddad quando acreditava que existia amor em São Paulo. O poder constituinte não é nada sem a multidão que o faz viver.
28/06/2013 Por Pilatti, Negri, Cocco
“Os protestos parecem inventar novas formas de luta. O poder constituinte está aí e, neste aqui e agora, se apresenta como incontornável, mas também vulnerável a aventuras reacionárias”
Os acontecimentos dos últimos dias, no Brasil, surpreenderam todos, em todos os horizontes políticos, internos e externos. O Brasil parecia o país sul-americano mais estável e, de repente, “a terra entrou em transe”. Independentemente dos desdobramentos futuros, a multidão mostrou sua potência. À direita e à esquerda se disse, com escândalo, que o movimento não tem “organicidade”, nem “linha”, nem “lideranças”. Até a esquerda dita radical teve de constatar que não há bandeiras abstratas que possam ser impostas, “de fora para dentro”, ao magma que se constitui a partir “de baixo”. “Como isso é possível? Como ousam?” Mas o movimento continua, passou a ser difuso, acelerando seus ritmos: nos centros e periferias, nas grandes e pequenas cidades, nas favelas e no asfalto, multiplicando as reivindicações.
Os acontecimentos dos últimos dias, no Brasil, surpreenderam todos, em todos os horizontes políticos, internos e externos. O Brasil parecia o país sul-americano mais estável e, de repente, “a terra entrou em transe”. Independentemente dos desdobramentos futuros, a multidão mostrou sua potência. À direita e à esquerda se disse, com escândalo, que o movimento não tem “organicidade”, nem “linha”, nem “lideranças”. Até a esquerda dita radical teve de constatar que não há bandeiras abstratas que possam ser impostas, “de fora para dentro”, ao magma que se constitui a partir “de baixo”. “Como isso é possível? Como ousam?” Mas o movimento continua, passou a ser difuso, acelerando seus ritmos: nos centros e periferias, nas grandes e pequenas cidades, nas favelas e no asfalto, multiplicando as reivindicações.
Busca Avançada
Levante da multidão
28/06/2013
Por Pilatti, Negri, Cocco
“Os protestos parecem inventar novas formas de luta. O poder constituinte está aí e, neste aqui e agora, se apresenta como incontornável, mas também vulnerável a aventuras reacionárias”
Por Adriano Pilatti, Antonio Negri e Giuseppe Cocco, no Valor
Os acontecimentos dos últimos dias, no Brasil, surpreenderam todos, em todos os horizontes políticos, internos e externos. O Brasil parecia o país sul-americano mais estável e, de repente, “a terra entrou em transe”. Independentemente dos desdobramentos futuros, a multidão mostrou sua potência. À direita e à esquerda se disse, com escândalo, que o movimento não tem “organicidade”, nem “linha”, nem “lideranças”. Até a esquerda dita radical teve de constatar que não há bandeiras abstratas que possam ser impostas, “de fora para dentro”, ao magma que se constitui a partir “de baixo”. “Como isso é possível? Como ousam?” Mas o movimento continua, passou a ser difuso, acelerando seus ritmos: nos centros e periferias, nas grandes e pequenas cidades, nas favelas e no asfalto, multiplicando as reivindicações.
Os protestos parecem inventar novas formas de luta. O poder constituinte está aí e, neste aqui e agora, se apresenta como incontornável, mas também vulnerável a aventuras reacionárias. Como organizar o pensamento diante dessa aceleração do tempo e dessa inovação radical? Como aproveitar as aberturas e evitar ou combater as ameaças?
Voltemos um pouco atrás. Em 2005 lançamos dois livros no Brasil: “Multidão” e “GlobAL”. Em “Multidão” dizíamos que o trabalho passava a ser explorado fora das fábricas, sem passar pela relação salarial. Se isso implica perda de direitos pela maior fragmentação e precariedade da relação salarial, ao mesmo tempo só pode funcionar se a autonomia do trabalho aumenta e se produz e reproduz dentro e pelas redes. Ou seja, por um lado, o capital desconstrói a classe trabalhadora em um sem-número de fragmentos; pelo outro, por trás dos fragmentos, há singularidades que podem cooperar entre si e perseverar como tais.
No capitalismo contemporâneo, a exploração é exatamente o fato dos agenciamentos subjetivos dos desejos (cognitivos, culturais, institucionais, empresariais) fixarem os “fragmentos” sem se abrir às modulações das singularidades. A multidão da qual falamos não se confunde com a definição sociológica e determinista do devir “líquido” da sociedade pós-moderna. Ao contrário, a multidão é um conceito, político e ontológico, de classe: a classe que se constitui nessa cooperação entre singularidades. Só há multidão quando ela se faz a si mesma, como ocorre neste momento no Brasil. É o contrário da massa dos fragmentos que mídia e direita querem fundir ao entoar o Hino Nacional.
Já em “GlobAL” saudávamos a chegada dos novos governos na América do Sul (sem dedicar uma palavra à Venezuela) e, ao mesmo tempo, dizíamos que eles deveriam ter dois cuidados: primeiro, não cair na ilusão de que haveria novo modelo a ser implementado; segundo, que as oscilações entre inflação dos juros e aquelas dos preços são apenas as duas faces da falta de democracia e essa depende das dimensões biopolíticas das lutas: as lutas pela vida e da vida dos pobres, que persistem diante do terror que o Estado impõe às favelas e às periferias. O livro passou despercebido. Os intelectuais críticos ao governo teorizavam o “Estado de exceção” e aqueles próximos do PT preferiam ver em Lula a incrível reencarnação de Vargas. Depois da crise global, o governo entrou nessa de achar que o desenvolvimentismo era o novo (sic) modelo.
Foi bem no meio dessa festa VIP que a terra tremeu. À direita, o governador de São Paulo usou a violência sem máscaras da polícia. À esquerda, o ministro da Justiça se propôs a mandar mais polícia ainda e bater mais. Quando tiveram que recuar, direita e esquerda apareceram juntas, com a diferença da cor das gravatas, para dizer que a redução do preço das passagens acarretaria o corte de outros gastos sociais. À direita e à esquerda se jogou lenha na fogueira da crise da representação, continuou-se a pensar a política do estranho ponto de vista do fisiologismo e da tecnocracia.
Desde segunda-feira, a elite e sua mídia corporativa trocaram o alvo de suas armas e passaram a usar seu poder concentrado (antidemocrático) para tentar manipular a comoção nacional num sentido reacionário. Pudemos ouvir, na quinta-feira (dia 20) em meio à repressão de milhares de manifestantes, a ideia de usar o Congresso para aplicar ao Brasil o golpe institucional já desfechado em Honduras e no Paraguai. Mas a presidente começou a reagir, embora de maneira tardia e tímida, propondo um plebiscito e uma “constituinte”.
Acontece que a teoria do poder constituinte e sua realidade (aquela que está abertamente nas ruas do Brasil inteiro) é uma teoria da democracia radical. Não é contra a representação, mas contra a separação dessa de sua fonte: a soberania popular. A corrupção está ali, nessa separação dos meios e dos fins, e quem se aproveita dela são aqueles que concentram os meios econômicos e a mídia, inclusive quando a condenam, de maneira moralista, apenas para aumentá-la em seu favor.
Avaliamos positivamente, em seu conjunto, as iniciativas de Dilma, mas pensamos que a solução não passa nem por um plebiscito nem pela convocação de pactos com supostos representantes dos movimentos (aliás, sempre os mesmos “patrocinados”). O desafio é abrir um verdadeiro “processo constituinte”, ou seja, abrir a pólis à participação efetiva do “demos”, nas ruas e além – mesmo que confusa em um primeiro momento – para unir mobilização e invenção de novas institucionalidades, de novas caras. Se o governo e o PT acharem que poderão evitar essa abertura pela mobilização de supostos representantes de casas e circuitos, repetirão o mesmo erro que fez Haddad quando acreditava que existia amor em São Paulo. O poder constituinte não é nada sem a multidão que o faz viver.
sábado, 6 de julho de 2013
Polichinello: Michel Foucault / Gilles Deleuze: é sempre uma multidão
Polichinello: Michel Foucault / Gilles Deleuze: é sempre uma multidão
Gilles Deleuze: A explicação é, possivelmente, que vivemos hoje de outro modo as relações entre teoria e prática. Antes, se concebia a prática como uma aplicação da teoria, como uma consequência, e também, ao contrário, como se a prática devesse inspirar a teoria; como se a própria prática fosse criadora de uma forma futura de teoria. Mas sempre se concebiam as relações entre teoria e prática sob a forma de um processo de totalização, da prática para a teoria ou da teoria para a prática.
Para nós, contudo, a questão põe-se de outro modo. As relações entre teoria e prática são muito mais parciais e fragmentadas. Por um lado, porque a teoria sempre é local, relativa a um campo pequeno; e pode ser aplicada em outro domínio, mais ou menos distante. A relação de aplicação nunca é relação de semelhança.
Por outro lado, a partir do momento em que a teoria se incrusta em seu próprio domínio, ela passa a enfrentar obstáculos, barreiras, choques, que obrigam que a teoria seja proposta mediante outro tipo de discurso. Esse outro tipo de discurso é que, eventualmente, faz a teoria passar para um domínio diferente.
A prática é um conjunto de conexões entre um ponto teórico e outro. E a teoria é um movimento que abarca duas ou mais práticas.
Nenhuma teoria pode desenvolver-se, se não encontrar uma espécie de muro, de resistência; e precisa-se da prática para perfurar esse muro.
Você, por exemplo: você começou por analisar teoricamente um modo de emprisionamento – o manicômio, no século 19, na sociedade capitalista. Depois, desembocou na necessidade de que as pessoas aprisionadas falassem por conta própria, que operassem uma conexão (ou, ao contrário, você é que estava em conexão com elas), e essas pessoas estão nas prisões. Quando você organizou o grupo de estudo sobre as prisões, foi sobre essa base: instaurar condições pelas quais os prisioneiros pudessem, eles mesmos, falar.
Seria completamente falso dizer, como parecem dizer os maoístas, que você estaria passando à prática, pela aplicação de suas teorias. No seu trabalho, não havia nem aplicação, nem projeto de reforma, nem investigação no sentido tradicional. Havia algo muito diferente: havia um sistema de conexão num conjunto, numa multiplicidade de peças e pedaços que eram, ao mesmo tempo, teóricos e práticos.
Para nós, o intelectual teórico deixou de ser um sujeito, uma consciência representante ou representativa. Os que agem e os que lutam já não são representados nem por partidos nem por sindicatos que se auto atribuam o direito de ser a consciência dos que lutam. Quem fala e quem luta? É sempre uma multidão, inclusive dentro da pessoa que luta e da pessoa que fala. Todos somos pequenos grupos. A representação já não existe. Só há a ação, ação de teoria, ação de prática, em relações de conexão ou de redes.
Michel Foucault: Parece-me que, tradicionalmente, o intelectual politiza-se a partir de duas coisas: (i) de sua posição de intelectual na sociedade burguesa, no sistema de produção capitalista, na ideologia que a sociedade capitalista produz ou impõe (ser explorado, reduzido à miséria, rejeitado, ser "maldito", acusado de subversivo, de imoral etc.); e (ii) o próprio discurso do intelectual, que revela alguma verdade, que descobre relações políticas onde, antes, nada se via.
Essas duas formas de politização não eram estranhas uma à outra, mas também não coincidiam necessariamente. Havia o tipo "intelectual maldito" e o "socialista". Essas duas politizações muito facilmente se confundiram em alguns momentos em que o poder reagiu violentamente – depois de [18]48, depois da Comuna, depois de 1940.
O intelectual foi rechaçado, perseguido, no preciso instante em que "as coisas" estariam aparecendo "de verdade"; no momento em que não seria preciso que alguém dissesse que o rei estava nu. O intelectual, nesses momentos, estaria dizendo a verdade a gente que ainda não estaria vendo a verdade; e o intelectual falaria em nome dos que não podiam dizer a verdade: seriam a consciência e a eloquência.
Ora, depois da recente avalanche os intelectuais descobriram que as massas não precisam deles para saber; que as massas sabem claramente, precisamente, muito melhor que os intelectuais. E que sabem afirmar extremamente bem o que sabem. Mas há um sistema de poder que proíbe, que impõe obstáculos, que invalida esse saber e esse discurso. É poder que não está só nas instâncias superiores da censura, mas que também se funde mais profundamente, mas sutilmente, em toda a malha social. Os próprios intelectuais são parte desse sistema de poder. A ideia de que os intelectuais seriam os agentes "da consciência" e do discurso está incluída nesse sistema de poder.
O papel do intelectual não é situar-se "um pouco à frente" ou "um pouco à margem", para daí dizer a verdade de todos, verdade a qual, sem os intelectuais, permaneceria muda.
Trata-se, sobretudo, de lutar contra as formas de poder em todos os pontos nos quais o poder é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do "saber", da "verdade", da "consciência" e do "discurso".
Nesse sentido, a teoria não expressa, não traduz nem é aplicação de uma prática: a teoria é uma prática. Mas é prática local e regional, como você diz, não é prática totalizadora. Luta-se contra o poder, luta-se para fazê-lo aparecer e golpeá-lo nos pontos em que o poder é mais invisível e insidioso.
Não se luta por alguma "tomada de consciência" – já faz muito tempo que as massas tomaram consciência, como saber; e também já faz muito tempo que a burguesia tomou, ocupou, a consciência, como sujeito. Luta-se, isso sim, para nos infiltrarmos no poder e tomar o poder, ao lado de todos os que lutam também por isso. Ao lado. Não afastados, a uma distância da qual os intelectuais iluminariam as massas. Cada sistema regional dessa luta é "uma teoria".
Gilles Deleuze: É. Cada teoria é precisamente uma caixa de ferramentas. Não há qualquer relação entre a teoria e seu significante. A teoria tem de servir, de funcionar. Tem de haver pessoas que se sirvam da teoria, a começar pelo próprio teórico, que deixa de ser teórico, e que, se não deixar de ser teórico, não vale nada (ou o momento ainda não chegou). Mas não se volta para teorias passadas: fazem-se outras. Há outras teorias por fazer.
Curioso é que o autor que mais passa por puro intelectual tenha sido quem disse isso com mais clareza: Proust[3]. Tratem meu livro como um par de lentes[4] dirigidas para fora; e, bem, se não servirem, troque as lentes, encontrem vocês mesmos, cada um, suas lentes próprias, o próprio aparelho, que será necessariamente aparelho de combate.
A teoria não pode ser totalizada; ela multiplica e multiplica-se. Quem, pela própria natureza, opera totalizações é o poder. Você diz exatamente: a teoria está, por natureza, contra o poder. Desde que uma teoria incrusta-se num ou noutro ponto, passa a enfrentar o risco de não ter qualquer consequência prática possível, de não provocar explosão alguma, sequer em algum outro ponto.
Por isso a noção de reforma tem, de estúpida, o que tem de hipócrita. Ou a reforma é feita por gente que se apresenta como representativa, gente que faz profissão do tomar a palavra de outros, do falar em nome de outros; nesse caso, a reforma não passa de remodelagem do poder, distribuição do poder, que sempre se faz acompanhar de repressão violenta; ou é reforma reclamada, exigida, por gente interessada em ser reformada e, nesse caso, a reforma deixa de ser reforma, é ação revolucionária que, do fundo de seu caráter parcial, está determinada a alterar a totalidade do poder e da hierarquia do poder.
É bem claro no caso das prisões: a mais mínima, a mais modesta, a mais minúscula reivindicação dos prisioneiros já basta para esvaziar qualquer pseudo reforma. Se as crianças numa escola maternal conseguem que se ouçam suas reivindicações, ou, pelo menos, que suas perguntas sejam consideradas, já basta para que se produza uma explosão no conjunto do sistema de ensino. De fato, o sistema no qual vivemos não pode suportar nenhuma pressão. Por isso é radicalmente frágil em todos os pontos. E por isso também, acumulou tal força de repressão global.
Em minha opinião, você foi o primeiro a nos ensinar algo de fundamental, tanto nos livros como num território prático: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer: a representação é cômica, é de rir. Já se disse que a representação estaria acabada. Mas não se extraíram todas as consequências dessa reconversão 'teórica' – quero dizer: que a teoria exige que os envolvidos falem, doravante, pode-se dizer, praticamente por conta deles mesmos.
Michel Foucault: E quando os prisioneiros puseram-se a falar, viu-se que tinham uma teoria da prisão, da pena, da justiça. Essa espécie de discurso contra o poder, esse contradiscurso mantido pelos prisoneiros e por todos que se considera como delinquentes, é, na realidade, o que importa, não alguma teoria sobre a delinquência. O problema da prisão é problema local e marginal; por ano, não passam mais de 100 mil pessoas pelas prisões; na França, atualmente [1972], há talvez 300 ou 400 mil pessoas que passaram pela prisão. Mesmo assim, esse problema marginal sacode todo mundo. Surpreendeu-me muito ver que tanta gente não prisioneira se interessava pelo problema das prisões. Surpreendeu-me que tanta gente que não estava predestinada a ouvir esse discurso dos prisioneiros o tenha afinal ouvido. Como explicar isso?
Talvez, porque, de modo geral, o sistema penal é a forma pela qual o poder se mostra como poder, de forma mais claramente manifesta? Meter alguém numa cela, fechá-lo, privá-lo de comida, de calefação, impedir alguém de sair, de fazer amor etc., essa é a mais delirante manifestação de poder que se poderia imaginar.
Outro dia, conversei com uma mulher que esteve presa, e ela dizia: "E pensar que me meteram na cadeia, a pão e água, eu, que tenho 40 anos..." O que me chama a atenção nessa história não é só a puerilidade do exercício do poder, mas também o cinismo com que o poder exerce-se como poder. Não há forma mais arcaica, mais pueril, mais infantil. Por alguém de castigo, a pão e água, é lição que se ensina a criança. A prisão é o único lugar em que o poder manifesta-se a nu, em suas dimensões mais excessivas, e nde se justifica como poder moral. "Tenho razão para castigar, porque todos sabem que não se deve roubar, matar...".
O mais fascinante nas prisões é que ali, só ali, o poder não se esconde, não se mascara: mostra-se plenamente como tirania imposta, até nos mais ínfimos detalhes, poder cínico e, ao mesmo tempo, puro, completamente 'justificado', já que pode ser completamente formulado no interior de uma moral que mascara o próprio exercício. A tirania selvagem do poder aparece ali como serena dominação do Bem sobre o Mal, da ordem sobre a desordem.
Gilles Deleuze: E o inverso também é verdade. Não só os prisioneiros são tratados como crianças: as crianças também são tratadas como prisioneiros. As crianças padecem uma infantilidade que não é a deles. Nesse sentido, pode-se dizer que as escolas são prisões, que as fábricas são prisões. Basta ver a entrada na [fábrica] Renault. Ou em outros locais: três pausas por dia, para fazer xixi.
Você encontrou um texto de Jeremias Bentham no século 18 que propõe, precisamente, uma reforma das prisões. Em nome dessa reforma, estabelece um sistema circular pelo qual, ao mesmo tempo, a prisão renovada passaria a servir de modelo, para que, sem qualquer dificuldade ou salto, se passe, da prisão para a escola e para a fábrica, e da fábrica para a prisão. Aí está a essência do reformismo, da representação reformada.
E é diferente, quando as pessoas não contrapõem uma representatividade 'nova' e falsa, à falsa representatividade velha do poder. Por exemplo, lembro que você disse que não há justiça popular contra a justiça, que a coisa acontece noutro nível.
Michel Foucault: Penso que, se se considera o ódio que o povo tem da justiça, de juízes, de tribunais, das prisões, não é aconselhável considerar só a ideia de outra justiça, melhor, mais justa. Entendo que se deva, em primeiro lugar e sobretudo, perceber o ponto singular no qual o poder exerce-se às expensas do povo. A luta antijudicial é luta contra o poder. Não me parece que seja luta contra as injustiças, contra as injustiças da justiça, e por um melhor funcionamento da instituição judicial. Mesmo assim, é surpreendente que sempre que houve motins, revoltas e sedições, o alvo tenha sido o aparelho judicial, ao mesmo tempo e pelas mesmas causas que o aparelho de fiscalização, o exército e as demais formas de poder.
Minha hipótese, mas é só uma hipótese, é que os tribunais populares – por exemplo, no momento da Revolução – sempre foram um modo, usado pela pequena burguesia aliada às massas, para esvaziar, para enfraquecer a luta contra a justiça. Para esvaziar a luta contra a justiça e reforçar a justiça, propuseram esse tipo de tribunal dito revolucionário, onde se faria justiça justa, com juiz justo, que ditaria sentenças justas. Assim se salvam os tribunais, os juízes, a justiça e as sentenças.
Mas a própria forma de tribunal para fazer justiça, que é parte de uma ideologia burguesa de justiça (burguesa), essa, escapa ilesa.
Gilles Deleuze: Se se considera a situação atual, o poder tem, necessariamente, uma visão total, global. Quero dizer que todas as atuais formas de representação, que são muitas, podem, do ponto de vista do poder, serem facilmente somadas numa só, podem ser facilmente totalizadas: a repressão racista contra os imigrados, a repressão nas fábricas, a repressão na escola e no ensino, a repressão contra os jovens em geral. Não se deve só procurar ver a unidade de todas essas formas só na reação ao maio-68; deve-se procurar vê-la, mais, numa preparação e numa organização concertadas de nosso futuro próximo.
O capitalismo francês precisa muito de uma "reserva de desemprego" e abandona a máscara liberal e paternalista do pleno emprego. Desse ponto de vista, eles encontram sua unidade: limitam a imigração, depois que ouviram dizer que os emigrados estavam sendo encarregados dos trabalhos mais duros e ingratos; limitam a repressão nas fábricas, no instante em que se tratou de devolver ao francês "o gosto" por um trabalho cada vez mais duro. A luta contra os jovens e a repressão na escola e no ensino, já que a repressão policial é tanto mais viva quanto menos o mercado de trabalho precise de jovens. Todas as categorias profissionais virão a ser convidadas para exercer funções cada vez mais claras de polícia: os professores, os psiquiatras, o pessoal da educação em geral, etc.
Vê-se aqui algo que você anuncia há tempo e que se supunha que não aconteceria: o reforço de todas as estruturas do encarceramento, da reclusão. Então, frente a essa política global do poder, surgem respostas locais, respostas corta-fogo, defesas ativas e, às vezes, preventivas.
Não nos interessa totalizar o que o poder já totaliza, e que só poderemos totalizar se restaurarmos formas representativas de centralismo e de hierarquia.
O que se pode fazer, isso sim, é instaurar conexões laterais, horizontais, um sistema de redes, de base popular, justamente o que é mais difícil. Seja como for, a realidade, para nós, absolutamente não passa pela política no sentido tradicional de competição e de distribuição de poder, das instâncias chamadas representativas, para o Partido Comunista ou a Confederação Geral do Trabalho.
"Realidade" é o que efetivamente se vê hoje na fábrica, na escola, no quartel, na prisão, numa delegacia. Por isso, a ação implica um tipo de informação que é, por natureza, muito diferente da informação que nos chega pelos jornais (ou pela Agência de Notícias do jornal Liberation).
Michel Foucault: Essa dificuldade, a dificuldade que temos para encontrar as formas adequadas de luta, não é resultado de nós ainda ignorarmos, até hoje, o que seja o poder? Foi preciso chegar ao século 19 para aprender que o poder era a exploração, mas ainda não se sabe e talvez jamais consigamos saber o que é o poder. Marx e Freud talvez não bastem para nos ajudar a conhecer essa coisa enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte, e que se chama "poder". A teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado não esgotam, é claro, o campo do exercício e do funcionamento do poder.
A grande incógnita atualmente é: "quem exerce o poder, e de que lugar o exerce?"
Já se conhece na prática quem explora, para onde vai o lucro, por quais mãos passa e onde é investido. Mas sobre o poder... Sabe-se que o poder não pertence aos governantes. A noção de "classe dirigente" não é clara nem foi satisfatoriamente elaborada. "Dominar", "dirigir", "governar", "grupo no poder", "aparelho de Estado" etc. – todas essas noções têm de ser analisadas. E seria preciso sabem bem até onde se exerce o poder, por quais conexões e até quais mínimas instâncias, quase sempre, instâncias de hierarquia, de controle, de vigilância, de proibições, de sujeições. Em todos os pontos onde haja poder, o poder é exercido. Dito com mais rigor, ninguém é titular do poder; mas, mesmo assim, o poder é sempre exercido numa determinada direção, com uns de um lado e os outros de outro. Nunca se sabe quem exatamente tem o poder; mas sempre se sabe quem não tem o poder.
Se a leitura de seus escritos (desde Nietzsche e a filosofia [1972][5]) até o que pressinto de Anti-Édipo. Capitalismo y esquizofrenia[6]) foi tão essencial para mim, é porque que eles fazem muito mais que apenas propor o problema do poder, afinal, sob o velho tema do sentido, do significado, do significante etc.; a desigualdade dos poderes, de suas lutas.
Cada luta desenrola-se em torno de um específico centro de poder (de um desses inúmeros pequenos focos, desde o chefete, o vigilante de casas populares, o diretor de uma prisão, um juiz, um diretor de sindicato, até o redator-chefe de um veículo da imprensa-empresa).
E, se indicar os núcleos, apontá-los, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, isso não acontece porque as pessoas não tenham consciência, mas, sim, porque falar desse tema, forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez o quê, indicar um alvo, já é uma primeira inversão do poder, já é um primeiro passo na direção e em função de outras lutas contra o poder.
Se discursos dos encarcerados ou dos médicos que trabalham nas prisões são lutas, é porque esses discursos confiscam, pelo menos por um momento, o poder de falar das prisões – um poder que, hoje, é exclusivamente ocupado pela administração das prisões e por seus compadres 'reformadores'.
O discurso de luta não faz oposição ao inconsciente: ele só se opõe aosecreto. Por isso, dá a impressão de ser menos importante. Mas e se, por isso, for muito mais importante?
Há toda uma série de equívocos sobre o "oculto", o "reprimido", o "não dito", e esses equívocos permitem que se faça uma "psicanálise" de baixo preço do que deve(ria) ser objeto de luta. Provavelmente, é mais fácil 'vazar' o secreto, o sigiloso, do que deixar à vista o inconsciente.
Até há pouco tempo, os dois temas que mais apareciam eram: "a escritura é o reprimido" e "a escritura é, de pleno direito, subversiva". E os dois, me parece, mostram algumas operações que se deve denunciar com severidade.
Gilles Deleuze: Quanto ao problema que você coloca – vê-se bem quem explora, quem se aproveita, quem governa, mas o poder é algo ainda mais difuso – ofereço a seguinte hipótese: o marxismo também, e sobretudo, determinou o problema em termos de interesse (o poder está em mãos de uma classe dominante definida por seus interesses). Mas, de repente, se tropeça numa pergunta: Como é possível que gente sem qualquer interesse preciso de assumir o poder, siga o poder, case-se tão completamente com o poder e passe a reclamar para si parte do ganho?
É possível que, em termos de investimentos, sejam econômicos sejam inconscientes, o interesse não tenha a última palavra... Há investimentos de desejo que explicam a necessidade de desejar, não contra o próprio interesse, já que o interesse sempre continua e aparece onde o desejo o ponha, mas desejar de forma mais profunda e difusa do que o simples interesse. É preciso preparar-se para ouvir o grito de Reich: não, não, as massas não foram enganadas; num determinado momento, as massas desejaram o fascismo!
Há investimentos de desejo que modelam o poder e o difundem, e fazem o poder estar tanto no plano policial como no plano do primeiro-ministro; e apagam qualquer diferença de natureza entre o poder de um simples policial e o poder de um primeiro-ministro. A natureza desses investimentos de desejo sobre um corpo social explica por que os partidos e os sindicatos – que, em nome dos interesses de toda a classe, teriam ou deveriam fazer investimentos sempre revolucionários – fazem muitas vezes, no plano do desejo, investimentos reformistas ou perfeitamente reacionários.
Michel Foucault: Como você diz, as relações entre desejo, poder e interesse são mais complexas do que se pensa. Resulta que os que exercem o podem não precisam ter, necessariamente, qualquer interesse em exercê-lo; os que têm interesse em exercer o poder não o exercem; e o desejo de poder joga, entre o poder e o interesse, um jogo muito especial.
Acontece que as massas, no momento do fascismo, desejam que alguns exerçam o poder; alguns que, contudo, não se confundem com as próprias massas, porque o poder será exercido sobre as massas e à custa das massas, até a morte, o sacrifício, o massacre. Mas as massas, mesmo assim, desejam aquele poder, querem que aquele poder seja exercido. Ainda conhecemos mal esse jogo de desejo, poder e interesses. E melhor conhecimento desse jogo teria sido muito útil para saber o que é a exploração. O desejo foi e é assunto muito amplo. É possível que as lutas que se travam hoje, e, além delas, também essas teorias locais, regionais, descontínuas que se vão elaborando nas lutas e ganham corpo com as próprias lutas, é possível que tudo isso seja o começo de um descobrimento de como exerce-se o poder.
Gilles Deleuze: Muito bem. Eu volto à questão: o movimento revolucionário atual tem muitos focos, e não por debilidade ou insuficiência do movimento, já que as totalizações são projetos e realizações do poder e da reação. Por exemplo, o Vietnã é uma formidável resposta local.
Mas como conceber as redes, as conexões transversais entre esses vários pontos ativos descontínuos, de um país a outro e no interior de um mesmo país?
Michel Foucault: Acho que essa descontinuidade geográfica de que você fala pode significar o seguinte: desde o momento em que se lute contra a exploração, é o proletariado quem, não só conduz a luta, mas quem também define os alvos, os métodos, os lugares e os instrumentos de luta. Aliar-se ao proletariado é unir-se nas posições dos proletários, sua ideologia, retomar os motivos de sua luta. É fundir-se.
Mas se se luta contra o poder, todos aqueles sobre os quais o poder é exercido como abuso, todos os que veem o poder como intolerável, podem comprometer-se com a luta no ponto em que estão, no local onde vivam, a partir de sua atividade (ou inação) específica. Comprometendo-se nessa luta que é deles, cujo alvo conhecem perfeitamente, e luta da qual eles podem definir o método, então, entram no processo revolucionário.
Como aliados dos proletários, sim, pois, se o poder exerce-se como tal, exerce-se, com certeza, para manter a exploração capitalista. Servem realmente à causa da revolução proletária, lutando, precisamente, nos pontos nos quais a opressão abate-se sobre eles. As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os enfermeiros nos hospitais, os homossexuais abriram hoje uma luta específica contra a forma privada de poder, de imposição, de controle que se exerce sobre eles.
Todas essas lutas são parte, atualmente, do movimento revolucionário, nos casos em que sejam radicais, sem concessões nem reformismos, sem tentativas para modelar o poder de sempre, para conseguir, no máximo, uma troca de titular.
E esses movimentos estão unidos ao movimento revolucionário do proletariado, na medida em que o proletariado haverá de combater contra todos os controles e imposições que reproduzem, em todos os cantos e pontos, sempre o mesmo poder.
Isso significa que a generalização e a generalidade da luta não se fazem mediante alguma totalização teórica, sob a forma de alguma "verdade". Quem generaliza a luta é o próprio sistema de poder, todas as formas de exercício e de aplicação do poder.
Gilles Deleuze: Não é possível tocar num ponto, seja qual for, sem que, a partir dali, já estejamos enfrentando todo esse conjunto difuso de poder que se quer tentar reverter, a partir das mais mínimas reivindicações. Por isso, todas e quaisquer defesas ou ataques revolucionários parciais, unem-se e integram-se na luta operária.
OS INTELECTUAIS E O PODER
Conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze
Michel Foucault: Um maoísta[2] disse-me, dia desses: "Entendo bem por que Sartre está conosco, por que faz política e em que sentido faz política. Respeito você e, afinal, compreendo um pouco. Você sempre falou do problema da prisão. Mas Deleuze... Desse, não entendo nada." Essa ideia surpreendeu-me muito, porque [o que você diz] parece-me sempre muito claro.
Gilles Deleuze: A explicação é, possivelmente, que vivemos hoje de outro modo as relações entre teoria e prática. Antes, se concebia a prática como uma aplicação da teoria, como uma consequência, e também, ao contrário, como se a prática devesse inspirar a teoria; como se a própria prática fosse criadora de uma forma futura de teoria. Mas sempre se concebiam as relações entre teoria e prática sob a forma de um processo de totalização, da prática para a teoria ou da teoria para a prática.
Para nós, contudo, a questão põe-se de outro modo. As relações entre teoria e prática são muito mais parciais e fragmentadas. Por um lado, porque a teoria sempre é local, relativa a um campo pequeno; e pode ser aplicada em outro domínio, mais ou menos distante. A relação de aplicação nunca é relação de semelhança.
Por outro lado, a partir do momento em que a teoria se incrusta em seu próprio domínio, ela passa a enfrentar obstáculos, barreiras, choques, que obrigam que a teoria seja proposta mediante outro tipo de discurso. Esse outro tipo de discurso é que, eventualmente, faz a teoria passar para um domínio diferente.
A prática é um conjunto de conexões entre um ponto teórico e outro. E a teoria é um movimento que abarca duas ou mais práticas.
Nenhuma teoria pode desenvolver-se, se não encontrar uma espécie de muro, de resistência; e precisa-se da prática para perfurar esse muro.
Você, por exemplo: você começou por analisar teoricamente um modo de emprisionamento – o manicômio, no século 19, na sociedade capitalista. Depois, desembocou na necessidade de que as pessoas aprisionadas falassem por conta própria, que operassem uma conexão (ou, ao contrário, você é que estava em conexão com elas), e essas pessoas estão nas prisões. Quando você organizou o grupo de estudo sobre as prisões, foi sobre essa base: instaurar condições pelas quais os prisioneiros pudessem, eles mesmos, falar.
Seria completamente falso dizer, como parecem dizer os maoístas, que você estaria passando à prática, pela aplicação de suas teorias. No seu trabalho, não havia nem aplicação, nem projeto de reforma, nem investigação no sentido tradicional. Havia algo muito diferente: havia um sistema de conexão num conjunto, numa multiplicidade de peças e pedaços que eram, ao mesmo tempo, teóricos e práticos.
Para nós, o intelectual teórico deixou de ser um sujeito, uma consciência representante ou representativa. Os que agem e os que lutam já não são representados nem por partidos nem por sindicatos que se auto atribuam o direito de ser a consciência dos que lutam. Quem fala e quem luta? É sempre uma multidão, inclusive dentro da pessoa que luta e da pessoa que fala. Todos somos pequenos grupos. A representação já não existe. Só há a ação, ação de teoria, ação de prática, em relações de conexão ou de redes.
Michel Foucault: Parece-me que, tradicionalmente, o intelectual politiza-se a partir de duas coisas: (i) de sua posição de intelectual na sociedade burguesa, no sistema de produção capitalista, na ideologia que a sociedade capitalista produz ou impõe (ser explorado, reduzido à miséria, rejeitado, ser "maldito", acusado de subversivo, de imoral etc.); e (ii) o próprio discurso do intelectual, que revela alguma verdade, que descobre relações políticas onde, antes, nada se via.
Essas duas formas de politização não eram estranhas uma à outra, mas também não coincidiam necessariamente. Havia o tipo "intelectual maldito" e o "socialista". Essas duas politizações muito facilmente se confundiram em alguns momentos em que o poder reagiu violentamente – depois de [18]48, depois da Comuna, depois de 1940.
O intelectual foi rechaçado, perseguido, no preciso instante em que "as coisas" estariam aparecendo "de verdade"; no momento em que não seria preciso que alguém dissesse que o rei estava nu. O intelectual, nesses momentos, estaria dizendo a verdade a gente que ainda não estaria vendo a verdade; e o intelectual falaria em nome dos que não podiam dizer a verdade: seriam a consciência e a eloquência.
Ora, depois da recente avalanche os intelectuais descobriram que as massas não precisam deles para saber; que as massas sabem claramente, precisamente, muito melhor que os intelectuais. E que sabem afirmar extremamente bem o que sabem. Mas há um sistema de poder que proíbe, que impõe obstáculos, que invalida esse saber e esse discurso. É poder que não está só nas instâncias superiores da censura, mas que também se funde mais profundamente, mas sutilmente, em toda a malha social. Os próprios intelectuais são parte desse sistema de poder. A ideia de que os intelectuais seriam os agentes "da consciência" e do discurso está incluída nesse sistema de poder.
O papel do intelectual não é situar-se "um pouco à frente" ou "um pouco à margem", para daí dizer a verdade de todos, verdade a qual, sem os intelectuais, permaneceria muda.
Trata-se, sobretudo, de lutar contra as formas de poder em todos os pontos nos quais o poder é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do "saber", da "verdade", da "consciência" e do "discurso".
Nesse sentido, a teoria não expressa, não traduz nem é aplicação de uma prática: a teoria é uma prática. Mas é prática local e regional, como você diz, não é prática totalizadora. Luta-se contra o poder, luta-se para fazê-lo aparecer e golpeá-lo nos pontos em que o poder é mais invisível e insidioso.
Não se luta por alguma "tomada de consciência" – já faz muito tempo que as massas tomaram consciência, como saber; e também já faz muito tempo que a burguesia tomou, ocupou, a consciência, como sujeito. Luta-se, isso sim, para nos infiltrarmos no poder e tomar o poder, ao lado de todos os que lutam também por isso. Ao lado. Não afastados, a uma distância da qual os intelectuais iluminariam as massas. Cada sistema regional dessa luta é "uma teoria".
Gilles Deleuze: É. Cada teoria é precisamente uma caixa de ferramentas. Não há qualquer relação entre a teoria e seu significante. A teoria tem de servir, de funcionar. Tem de haver pessoas que se sirvam da teoria, a começar pelo próprio teórico, que deixa de ser teórico, e que, se não deixar de ser teórico, não vale nada (ou o momento ainda não chegou). Mas não se volta para teorias passadas: fazem-se outras. Há outras teorias por fazer.
Curioso é que o autor que mais passa por puro intelectual tenha sido quem disse isso com mais clareza: Proust[3]. Tratem meu livro como um par de lentes[4] dirigidas para fora; e, bem, se não servirem, troque as lentes, encontrem vocês mesmos, cada um, suas lentes próprias, o próprio aparelho, que será necessariamente aparelho de combate.
A teoria não pode ser totalizada; ela multiplica e multiplica-se. Quem, pela própria natureza, opera totalizações é o poder. Você diz exatamente: a teoria está, por natureza, contra o poder. Desde que uma teoria incrusta-se num ou noutro ponto, passa a enfrentar o risco de não ter qualquer consequência prática possível, de não provocar explosão alguma, sequer em algum outro ponto.
Por isso a noção de reforma tem, de estúpida, o que tem de hipócrita. Ou a reforma é feita por gente que se apresenta como representativa, gente que faz profissão do tomar a palavra de outros, do falar em nome de outros; nesse caso, a reforma não passa de remodelagem do poder, distribuição do poder, que sempre se faz acompanhar de repressão violenta; ou é reforma reclamada, exigida, por gente interessada em ser reformada e, nesse caso, a reforma deixa de ser reforma, é ação revolucionária que, do fundo de seu caráter parcial, está determinada a alterar a totalidade do poder e da hierarquia do poder.
É bem claro no caso das prisões: a mais mínima, a mais modesta, a mais minúscula reivindicação dos prisioneiros já basta para esvaziar qualquer pseudo reforma. Se as crianças numa escola maternal conseguem que se ouçam suas reivindicações, ou, pelo menos, que suas perguntas sejam consideradas, já basta para que se produza uma explosão no conjunto do sistema de ensino. De fato, o sistema no qual vivemos não pode suportar nenhuma pressão. Por isso é radicalmente frágil em todos os pontos. E por isso também, acumulou tal força de repressão global.
Em minha opinião, você foi o primeiro a nos ensinar algo de fundamental, tanto nos livros como num território prático: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer: a representação é cômica, é de rir. Já se disse que a representação estaria acabada. Mas não se extraíram todas as consequências dessa reconversão 'teórica' – quero dizer: que a teoria exige que os envolvidos falem, doravante, pode-se dizer, praticamente por conta deles mesmos.
Michel Foucault: E quando os prisioneiros puseram-se a falar, viu-se que tinham uma teoria da prisão, da pena, da justiça. Essa espécie de discurso contra o poder, esse contradiscurso mantido pelos prisoneiros e por todos que se considera como delinquentes, é, na realidade, o que importa, não alguma teoria sobre a delinquência. O problema da prisão é problema local e marginal; por ano, não passam mais de 100 mil pessoas pelas prisões; na França, atualmente [1972], há talvez 300 ou 400 mil pessoas que passaram pela prisão. Mesmo assim, esse problema marginal sacode todo mundo. Surpreendeu-me muito ver que tanta gente não prisioneira se interessava pelo problema das prisões. Surpreendeu-me que tanta gente que não estava predestinada a ouvir esse discurso dos prisioneiros o tenha afinal ouvido. Como explicar isso?
Talvez, porque, de modo geral, o sistema penal é a forma pela qual o poder se mostra como poder, de forma mais claramente manifesta? Meter alguém numa cela, fechá-lo, privá-lo de comida, de calefação, impedir alguém de sair, de fazer amor etc., essa é a mais delirante manifestação de poder que se poderia imaginar.
Outro dia, conversei com uma mulher que esteve presa, e ela dizia: "E pensar que me meteram na cadeia, a pão e água, eu, que tenho 40 anos..." O que me chama a atenção nessa história não é só a puerilidade do exercício do poder, mas também o cinismo com que o poder exerce-se como poder. Não há forma mais arcaica, mais pueril, mais infantil. Por alguém de castigo, a pão e água, é lição que se ensina a criança. A prisão é o único lugar em que o poder manifesta-se a nu, em suas dimensões mais excessivas, e nde se justifica como poder moral. "Tenho razão para castigar, porque todos sabem que não se deve roubar, matar...".
O mais fascinante nas prisões é que ali, só ali, o poder não se esconde, não se mascara: mostra-se plenamente como tirania imposta, até nos mais ínfimos detalhes, poder cínico e, ao mesmo tempo, puro, completamente 'justificado', já que pode ser completamente formulado no interior de uma moral que mascara o próprio exercício. A tirania selvagem do poder aparece ali como serena dominação do Bem sobre o Mal, da ordem sobre a desordem.
Gilles Deleuze: E o inverso também é verdade. Não só os prisioneiros são tratados como crianças: as crianças também são tratadas como prisioneiros. As crianças padecem uma infantilidade que não é a deles. Nesse sentido, pode-se dizer que as escolas são prisões, que as fábricas são prisões. Basta ver a entrada na [fábrica] Renault. Ou em outros locais: três pausas por dia, para fazer xixi.
Você encontrou um texto de Jeremias Bentham no século 18 que propõe, precisamente, uma reforma das prisões. Em nome dessa reforma, estabelece um sistema circular pelo qual, ao mesmo tempo, a prisão renovada passaria a servir de modelo, para que, sem qualquer dificuldade ou salto, se passe, da prisão para a escola e para a fábrica, e da fábrica para a prisão. Aí está a essência do reformismo, da representação reformada.
E é diferente, quando as pessoas não contrapõem uma representatividade 'nova' e falsa, à falsa representatividade velha do poder. Por exemplo, lembro que você disse que não há justiça popular contra a justiça, que a coisa acontece noutro nível.
Michel Foucault: Penso que, se se considera o ódio que o povo tem da justiça, de juízes, de tribunais, das prisões, não é aconselhável considerar só a ideia de outra justiça, melhor, mais justa. Entendo que se deva, em primeiro lugar e sobretudo, perceber o ponto singular no qual o poder exerce-se às expensas do povo. A luta antijudicial é luta contra o poder. Não me parece que seja luta contra as injustiças, contra as injustiças da justiça, e por um melhor funcionamento da instituição judicial. Mesmo assim, é surpreendente que sempre que houve motins, revoltas e sedições, o alvo tenha sido o aparelho judicial, ao mesmo tempo e pelas mesmas causas que o aparelho de fiscalização, o exército e as demais formas de poder.
Minha hipótese, mas é só uma hipótese, é que os tribunais populares – por exemplo, no momento da Revolução – sempre foram um modo, usado pela pequena burguesia aliada às massas, para esvaziar, para enfraquecer a luta contra a justiça. Para esvaziar a luta contra a justiça e reforçar a justiça, propuseram esse tipo de tribunal dito revolucionário, onde se faria justiça justa, com juiz justo, que ditaria sentenças justas. Assim se salvam os tribunais, os juízes, a justiça e as sentenças.
Mas a própria forma de tribunal para fazer justiça, que é parte de uma ideologia burguesa de justiça (burguesa), essa, escapa ilesa.
Gilles Deleuze: Se se considera a situação atual, o poder tem, necessariamente, uma visão total, global. Quero dizer que todas as atuais formas de representação, que são muitas, podem, do ponto de vista do poder, serem facilmente somadas numa só, podem ser facilmente totalizadas: a repressão racista contra os imigrados, a repressão nas fábricas, a repressão na escola e no ensino, a repressão contra os jovens em geral. Não se deve só procurar ver a unidade de todas essas formas só na reação ao maio-68; deve-se procurar vê-la, mais, numa preparação e numa organização concertadas de nosso futuro próximo.
O capitalismo francês precisa muito de uma "reserva de desemprego" e abandona a máscara liberal e paternalista do pleno emprego. Desse ponto de vista, eles encontram sua unidade: limitam a imigração, depois que ouviram dizer que os emigrados estavam sendo encarregados dos trabalhos mais duros e ingratos; limitam a repressão nas fábricas, no instante em que se tratou de devolver ao francês "o gosto" por um trabalho cada vez mais duro. A luta contra os jovens e a repressão na escola e no ensino, já que a repressão policial é tanto mais viva quanto menos o mercado de trabalho precise de jovens. Todas as categorias profissionais virão a ser convidadas para exercer funções cada vez mais claras de polícia: os professores, os psiquiatras, o pessoal da educação em geral, etc.
Vê-se aqui algo que você anuncia há tempo e que se supunha que não aconteceria: o reforço de todas as estruturas do encarceramento, da reclusão. Então, frente a essa política global do poder, surgem respostas locais, respostas corta-fogo, defesas ativas e, às vezes, preventivas.
Não nos interessa totalizar o que o poder já totaliza, e que só poderemos totalizar se restaurarmos formas representativas de centralismo e de hierarquia.
O que se pode fazer, isso sim, é instaurar conexões laterais, horizontais, um sistema de redes, de base popular, justamente o que é mais difícil. Seja como for, a realidade, para nós, absolutamente não passa pela política no sentido tradicional de competição e de distribuição de poder, das instâncias chamadas representativas, para o Partido Comunista ou a Confederação Geral do Trabalho.
"Realidade" é o que efetivamente se vê hoje na fábrica, na escola, no quartel, na prisão, numa delegacia. Por isso, a ação implica um tipo de informação que é, por natureza, muito diferente da informação que nos chega pelos jornais (ou pela Agência de Notícias do jornal Liberation).
Michel Foucault: Essa dificuldade, a dificuldade que temos para encontrar as formas adequadas de luta, não é resultado de nós ainda ignorarmos, até hoje, o que seja o poder? Foi preciso chegar ao século 19 para aprender que o poder era a exploração, mas ainda não se sabe e talvez jamais consigamos saber o que é o poder. Marx e Freud talvez não bastem para nos ajudar a conhecer essa coisa enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte, e que se chama "poder". A teoria do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de Estado não esgotam, é claro, o campo do exercício e do funcionamento do poder.
A grande incógnita atualmente é: "quem exerce o poder, e de que lugar o exerce?"
Já se conhece na prática quem explora, para onde vai o lucro, por quais mãos passa e onde é investido. Mas sobre o poder... Sabe-se que o poder não pertence aos governantes. A noção de "classe dirigente" não é clara nem foi satisfatoriamente elaborada. "Dominar", "dirigir", "governar", "grupo no poder", "aparelho de Estado" etc. – todas essas noções têm de ser analisadas. E seria preciso sabem bem até onde se exerce o poder, por quais conexões e até quais mínimas instâncias, quase sempre, instâncias de hierarquia, de controle, de vigilância, de proibições, de sujeições. Em todos os pontos onde haja poder, o poder é exercido. Dito com mais rigor, ninguém é titular do poder; mas, mesmo assim, o poder é sempre exercido numa determinada direção, com uns de um lado e os outros de outro. Nunca se sabe quem exatamente tem o poder; mas sempre se sabe quem não tem o poder.
Se a leitura de seus escritos (desde Nietzsche e a filosofia [1972][5]) até o que pressinto de Anti-Édipo. Capitalismo y esquizofrenia[6]) foi tão essencial para mim, é porque que eles fazem muito mais que apenas propor o problema do poder, afinal, sob o velho tema do sentido, do significado, do significante etc.; a desigualdade dos poderes, de suas lutas.
Cada luta desenrola-se em torno de um específico centro de poder (de um desses inúmeros pequenos focos, desde o chefete, o vigilante de casas populares, o diretor de uma prisão, um juiz, um diretor de sindicato, até o redator-chefe de um veículo da imprensa-empresa).
E, se indicar os núcleos, apontá-los, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, isso não acontece porque as pessoas não tenham consciência, mas, sim, porque falar desse tema, forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez o quê, indicar um alvo, já é uma primeira inversão do poder, já é um primeiro passo na direção e em função de outras lutas contra o poder.
Se discursos dos encarcerados ou dos médicos que trabalham nas prisões são lutas, é porque esses discursos confiscam, pelo menos por um momento, o poder de falar das prisões – um poder que, hoje, é exclusivamente ocupado pela administração das prisões e por seus compadres 'reformadores'.
O discurso de luta não faz oposição ao inconsciente: ele só se opõe aosecreto. Por isso, dá a impressão de ser menos importante. Mas e se, por isso, for muito mais importante?
Há toda uma série de equívocos sobre o "oculto", o "reprimido", o "não dito", e esses equívocos permitem que se faça uma "psicanálise" de baixo preço do que deve(ria) ser objeto de luta. Provavelmente, é mais fácil 'vazar' o secreto, o sigiloso, do que deixar à vista o inconsciente.
Até há pouco tempo, os dois temas que mais apareciam eram: "a escritura é o reprimido" e "a escritura é, de pleno direito, subversiva". E os dois, me parece, mostram algumas operações que se deve denunciar com severidade.
Gilles Deleuze: Quanto ao problema que você coloca – vê-se bem quem explora, quem se aproveita, quem governa, mas o poder é algo ainda mais difuso – ofereço a seguinte hipótese: o marxismo também, e sobretudo, determinou o problema em termos de interesse (o poder está em mãos de uma classe dominante definida por seus interesses). Mas, de repente, se tropeça numa pergunta: Como é possível que gente sem qualquer interesse preciso de assumir o poder, siga o poder, case-se tão completamente com o poder e passe a reclamar para si parte do ganho?
É possível que, em termos de investimentos, sejam econômicos sejam inconscientes, o interesse não tenha a última palavra... Há investimentos de desejo que explicam a necessidade de desejar, não contra o próprio interesse, já que o interesse sempre continua e aparece onde o desejo o ponha, mas desejar de forma mais profunda e difusa do que o simples interesse. É preciso preparar-se para ouvir o grito de Reich: não, não, as massas não foram enganadas; num determinado momento, as massas desejaram o fascismo!
Há investimentos de desejo que modelam o poder e o difundem, e fazem o poder estar tanto no plano policial como no plano do primeiro-ministro; e apagam qualquer diferença de natureza entre o poder de um simples policial e o poder de um primeiro-ministro. A natureza desses investimentos de desejo sobre um corpo social explica por que os partidos e os sindicatos – que, em nome dos interesses de toda a classe, teriam ou deveriam fazer investimentos sempre revolucionários – fazem muitas vezes, no plano do desejo, investimentos reformistas ou perfeitamente reacionários.
Michel Foucault: Como você diz, as relações entre desejo, poder e interesse são mais complexas do que se pensa. Resulta que os que exercem o podem não precisam ter, necessariamente, qualquer interesse em exercê-lo; os que têm interesse em exercer o poder não o exercem; e o desejo de poder joga, entre o poder e o interesse, um jogo muito especial.
Acontece que as massas, no momento do fascismo, desejam que alguns exerçam o poder; alguns que, contudo, não se confundem com as próprias massas, porque o poder será exercido sobre as massas e à custa das massas, até a morte, o sacrifício, o massacre. Mas as massas, mesmo assim, desejam aquele poder, querem que aquele poder seja exercido. Ainda conhecemos mal esse jogo de desejo, poder e interesses. E melhor conhecimento desse jogo teria sido muito útil para saber o que é a exploração. O desejo foi e é assunto muito amplo. É possível que as lutas que se travam hoje, e, além delas, também essas teorias locais, regionais, descontínuas que se vão elaborando nas lutas e ganham corpo com as próprias lutas, é possível que tudo isso seja o começo de um descobrimento de como exerce-se o poder.
Gilles Deleuze: Muito bem. Eu volto à questão: o movimento revolucionário atual tem muitos focos, e não por debilidade ou insuficiência do movimento, já que as totalizações são projetos e realizações do poder e da reação. Por exemplo, o Vietnã é uma formidável resposta local.
Mas como conceber as redes, as conexões transversais entre esses vários pontos ativos descontínuos, de um país a outro e no interior de um mesmo país?
Michel Foucault: Acho que essa descontinuidade geográfica de que você fala pode significar o seguinte: desde o momento em que se lute contra a exploração, é o proletariado quem, não só conduz a luta, mas quem também define os alvos, os métodos, os lugares e os instrumentos de luta. Aliar-se ao proletariado é unir-se nas posições dos proletários, sua ideologia, retomar os motivos de sua luta. É fundir-se.
Mas se se luta contra o poder, todos aqueles sobre os quais o poder é exercido como abuso, todos os que veem o poder como intolerável, podem comprometer-se com a luta no ponto em que estão, no local onde vivam, a partir de sua atividade (ou inação) específica. Comprometendo-se nessa luta que é deles, cujo alvo conhecem perfeitamente, e luta da qual eles podem definir o método, então, entram no processo revolucionário.
Como aliados dos proletários, sim, pois, se o poder exerce-se como tal, exerce-se, com certeza, para manter a exploração capitalista. Servem realmente à causa da revolução proletária, lutando, precisamente, nos pontos nos quais a opressão abate-se sobre eles. As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os enfermeiros nos hospitais, os homossexuais abriram hoje uma luta específica contra a forma privada de poder, de imposição, de controle que se exerce sobre eles.
Todas essas lutas são parte, atualmente, do movimento revolucionário, nos casos em que sejam radicais, sem concessões nem reformismos, sem tentativas para modelar o poder de sempre, para conseguir, no máximo, uma troca de titular.
E esses movimentos estão unidos ao movimento revolucionário do proletariado, na medida em que o proletariado haverá de combater contra todos os controles e imposições que reproduzem, em todos os cantos e pontos, sempre o mesmo poder.
Isso significa que a generalização e a generalidade da luta não se fazem mediante alguma totalização teórica, sob a forma de alguma "verdade". Quem generaliza a luta é o próprio sistema de poder, todas as formas de exercício e de aplicação do poder.
Gilles Deleuze: Não é possível tocar num ponto, seja qual for, sem que, a partir dali, já estejamos enfrentando todo esse conjunto difuso de poder que se quer tentar reverter, a partir das mais mínimas reivindicações. Por isso, todas e quaisquer defesas ou ataques revolucionários parciais, unem-se e integram-se na luta operária.
***
[1] Tradução Roberto Machado publicado em Microfísica do Poder
(organização, introdução e revisão técnica de R. Machado)
Rio de Janeiro: Graal, 1979
[2] É uma espécie de intelectual francês que, em Paris, nos anos 60s, era chamado de "maoísta". Mao jamais teve coisa alguma a ver com aqueles caras. A discussão chegou ao Brasil ainda mais contaminada por outros zilhões de 'leituras' intermediárias nem sempre explicitadas com clareza e com as quais, tampouco, Mao teve, algum dia, alguma coisa a ver. Em 1967, Goddard fez um filme sobre aqueles 'maoístas' à francesa [na França: La Chinoise; no Brasil: "A Chinesa"; em Portugal: "O Maoísta"].
O maoísmo, fantasiado dessa vez de chinesa sexy-misteriosa-fetiche de intelectuais ocidentais e vítima de pressuposta perseguição pressuposta desumana, por defender pressupostos direitos pressupostos humanos (como, hoje, o tal "dissidente chinês cego") também aparece, também falsificado, em Les invasions barbares (dir. Denys Arcand, 2003, "As Invasões Bárbaras").
Mao, como se sabe, sempre ensinou que "só a luta ensina". Essa lição foi interpretada em vários círculos como 'pôr a prática à frente da teoria' ou, como Deleuze diz aí: "passar da prática à teoria". Nada mais distante da cabeça de Mao, que essa leitura. Mao sempre disse que só a luta ensina a lutar. Jamais lhe passou pela cabeça que só alguma luta ensinaria alguma teoria, mesmo que fosse teoria da luta.
No máximo, admite-se que tenha dito que para conhecer uma maçã é preciso mordê-la. Mas conhecer não é, de modo algum, construir teoria completa e consistente, nem, mesmo, meia teoria, sobre (i) o conhecer; (ii) a maçã; ou (iii) o morder, quer dizer, a prática [NTs].
O maoísmo, fantasiado dessa vez de chinesa sexy-misteriosa-fetiche de intelectuais ocidentais e vítima de pressuposta perseguição pressuposta desumana, por defender pressupostos direitos pressupostos humanos (como, hoje, o tal "dissidente chinês cego") também aparece, também falsificado, em Les invasions barbares (dir. Denys Arcand, 2003, "As Invasões Bárbaras").
Mao, como se sabe, sempre ensinou que "só a luta ensina". Essa lição foi interpretada em vários círculos como 'pôr a prática à frente da teoria' ou, como Deleuze diz aí: "passar da prática à teoria". Nada mais distante da cabeça de Mao, que essa leitura. Mao sempre disse que só a luta ensina a lutar. Jamais lhe passou pela cabeça que só alguma luta ensinaria alguma teoria, mesmo que fosse teoria da luta.
No máximo, admite-se que tenha dito que para conhecer uma maçã é preciso mordê-la. Mas conhecer não é, de modo algum, construir teoria completa e consistente, nem, mesmo, meia teoria, sobre (i) o conhecer; (ii) a maçã; ou (iii) o morder, quer dizer, a prática [NTs].
[3] Ver DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio C. Piquet e RobertoMachado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987 [NTs].
[4] PROUST, Marcel, A busca do tempo perdido, vol. 7: O tempo recuperado. Pode ser lido, em retradução de Fernando Py, emhttp://pt.scribd.com/esmand/d/46435967-8688743-O-Tempo-Redescorberto-PROUST. Mas a melhor tradução que jamais se fez em língua portuguesa, desse 7º volume da Recherche, é a de Lúcia Miguel Pereira, para a Ed. Livraria do Globo, Porto Alegre: PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Trad. de Mário Quintana, Lourdes de Souza Alencar, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Lúcia Miguel Pereira. Rio de Janeiro/Porto Alegre/São Paulo: Globo, 1956-1958. 7v. [NTs].
[6] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia, São Paulo: Editora 34, Trad. Luiz B. L. Orlandi, 2010, 1ª ed.
segunda-feira, 1 de julho de 2013
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