sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Interstícios urbanos

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Reportagem Interstícios urbanos
Por Marina Mezzacappa
Colaboração: Enio Rodrigo

A noção de vazio é inerente à atividade do arquiteto, profissional que trabalha justamente a ocupação construtiva desses espaços vagos. Na concepção de projetos arquitetônicos, além de pensar a materialidade das construções, ele se debruça também sobre os hiatos que em meio a ela se fazem necessários. “O arquiteto compõe o espaço como uma música, com sons cheios e silêncios vazios. Esses dois elementos têm que dialogar”, compara a arquiteta alemã Anja Pratschke, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), campus de São Carlos. Nesse sentido, o vazio não é um área sem definição, mas sim a contrapartida do cheio. “O vazio que os arquitetos pensaram e pensam é o vazio típico do que chamamos ‘interior' e sempre foi um espaço completo, com uma finalidade, uma função, um ‘vazio preparado', arquitetado para uma ocupação”, explica Fernando Freitas Fuão, docente da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Alguns vazios, contudo, são pensados para se manterem como tal. No seu processo de criação, podem ter diversos sentidos. “Os pontos de partida para esses vazios podem ser filosóficos, históricos, de compreensão do espaço”, elenca Pratschke. Ela cita dois exemplos, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e o Museu Judaico de Berlim. No caso brasileiro, o terreno que abrigava o mirante do belvedere do Parque Trianon foi doado para a construção do Masp com a condição de que a vista que ele proporcionava fosse preservada. Assim, a arquiteta Lina Bo Bardi desenhou, em 1958, o vão livre de 74 metros que deu origem a uma praça coberta entre os andares superiores e inferiores do museu. Hoje, quarenta anos após sua inauguração, as transformações da cidade encobriram parte da vista original, mas o espaço adquiriu novos significados. “É como um respiro. Você tem todo o movimento na avenida Paulista contrapondo-se a esse vão que está vazio”, reflete Pratschke.
No caso do Museu Judaico de Berlim, projetado por Daniel Libeskind, os vazios foram estruturados para representar a ausência dos judeus, expurgados da cidade por ocasião do Holocausto. “Ele deixa o vazio para te convidar a refletir sobre uma coisa que não esta resolvida”, explica a pesquisadora.
Com a modernidade, novos significados foram atribuídos ao vazio. O urbanismo modernista troca os espaços confinados pelos grandes espaços livres e grandes avenidas, propondo cidades abertas. Surge a idéia do espaço público, aberto, como o lugar do grande vazio, mas também do encontro, do evento. Clara Luiza Miranda, arquiteta da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), cita a Praça dos Três Poderes, em Brasília, como um dos ícones desse movimento. “É fato que a multidão esperada para a praça ainda não teve seu tempo”, lamenta. Em contraponto, a praça contemporânea preocupa-se em recuperar o sentido de urbanidade, resgatando os espaços das praças histórias e seu sentido de pertencimento.
Fissuras nas cidades
Também, na concepção das cidades, a questão do vazio se impõe enquanto dialética entre espaços construídos e espaços não-construídos (ou desconstruídos, esvaziados). “A relação entre cheios e vazios em uma cidade se iguala e se faz tão importante quanto em uma obra de arte, quando quer o artista fazê-la compreensível e assimilável”, compara Dias. Mas, atualmente, essa contraposição fica dificultada, já que as cidades transformaram-se em massas excessivamente construídas e são escassas as áreas não edificadas, livres de concreto e ferro. “Desde a metrópole, a multidão e, agora, a mega-cidade, o vazio se torna uma matéria rara, que incorpora não apenas o sentido físico e econômico, mas de lugar de memória, existencial, estético, essencial ao repouso, à desaceleração, à síncope do tempo”, avalia Miranda.
À medida que os cidadãos só conseguem ou podem se relacionar com espaços construídos, os espaços públicos são entregues à decadência e à marginalidade e reafirma-se a cidade como uma soma de espaços privados, segmentados e limitados por paredes, alambrados e cercas elétricas. “O medo do espaço amplo externo (agorafobia) burguês se dirige, no caso do homem contemporâneo, ao espaço vazio, aos interstícios, instalando, então, espaços contenedores controlados por uma variedade de dispositivos de segurança”, diz a arquiteta da Ufes. A cidadania é reduzida à capacidade de possuir um imóvel.
A lógica de empreendedorismo e utilitarismo impede que, ao invés da construção de edifícios, cultive-se um pomar, uma horta ou um jardim nos locais ainda vagos. “Muitas prefeituras sobretaxam terrenos desocupados, como um modo de ‘punir' aqueles que preferem criar capim a construir algo”, lembra Rocha. Como bem coloca o educador e escritor Rubem Alves no artigo O vazio, meio urbano e meio rural se contrapõe nesse ponto. “A roça é o lugar onde o vazio é grande. A cidade é o lugar onde o vazio é pequeno. Na cidade a gente olha para fora e os olhos logo batem num edifício, num muro, nos automóveis. Na cidade a gente vê curto. Na roça, porque o vazio é grande, os olhos vêem longe, muito longe”, escreve.
Nesse sentido, o vazio também tem o papel de “fazer ver” a própria arquitetura. “O vazio torna visível o construído. Desta forma o ser produz o útil, mas é o não-ser que o torna eficaz”, explica Dorival Rossi, professor do curso de design da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru. Para Paula Landim, do Departamento de Desenho Industrial da mesma universidade, contudo, é comum encontrar ótimos projetos de arquitetura, que, “espremidos” em um terreno, perdem seu destaque. “É o que eu costumo chamar de peru num pires”, brinca. A mesma lógica das construções ela aplica aos objetos, sua área de estudo atual. “Ao colocar um vaso ou uma cadeira em um ambiente atulhado de outras coisas, atulhado de informações, você não tem condições de enxergar e apreciar”, pontua.
Vazios urbanos
Ainda sob o prisma do urbanismo, existem os chamados vazios urbanos, lugares abandonados, esquecidos, destituídos, despovoados, desabitados, ociosos, obsoletos. São galpões, portos, edifícios antigos em ruínas, fábricas, entre outras edificações e espaços, que apresentam uma dupla ausência: de ocupação material/funcional e de interesses/significados sociais. “É o vazio como o resultado daquilo que se esgotou. O esgotamento do sentido, da essência”, sintetiza Freitas Fuão. Segundo ele, esses espaços, que muitas vezes não conseguimos determinar a quem pertencem, incomodam principalmente por sua improdutividade.
O surgimento desses vazios remete a processos políticos, econômicos e sociais. Algumas áreas valorizaram-se historicamente em detrimento de outras, que são progressivamente abandonadas. “Se examinarmos o próprio movimento que esvaziou os centros das cidades da presença de classes mais abastadas, perceberemos que, toda vez que o diminuto mercado de classe média em nosso país abre uma nova frente de expansão, esvazia a anterior”, lembra Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em Um novo lugar para o velho centro. “Desvalorizados pela lógica do mercado e pelo imaginário de nossa cultura urbana, esses espaços semi-abandonados abrigam hoje o que ‘sobrou' de sua centralidade anterior – quem não teve renda para acompanhar os novos lugares ‘em voga', quem sobrevive da própria condição de abandono”, prossegue.
Inaproveitados, esses espaços não são apenas uma questão social, de mau uso do capital investido e de desprezo do patrimônio construído, mas também um problema ambiental, como aponta Demetre Anastassakis, arquiteto e ex-presidente nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil no texto Sustentabilidade das cidades. “Deixam de usar uma infra-estrutura projetada e calculada para sua plena utilização, fazendo a cidade buscar novos terrenos, novos territórios para crescer, territórios para urbanizar”, detalha. Paradoxalmente, cinco milhões de casas e apartamentos estão vagos nas áreas urbanas brasileiras, como apontam dados da Fundação João Pinheiro, colhidos em 2005.
Apesar de denominados “vazios”, esses vazios urbanos também têm vida, “reivindicam” alguma coisa, ainda que muitos não se dêem conta. “Esses vazios do abandono, não são vazios, não são sem sentido essas arquiteturas, pois esses objetos falam, gritam, apontam, reenviam para um outro tipo de vazio”, avalia Freitas Fuão. Assim, como lembra Rossi, o vazio pode ser entendido com virtus , como potência “algo que ainda não existe no plano material, que se originou e que significa energia de fazer”.
Por essa perspectiva, esses espaços também carregam em si a expectativa do novo. “A crise traz a angústia da ausência clara do uso atual, mas também a esperança de algo novo, indeterminado e promissor”, reflete Carlos Leite, professor do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie em artigo publicado na ComCiência.
Ao menos parte desses espaços pode constituir a base para projetos urbanos estratégicos de regeneração de cidades ou periferias. Contudo, essa reapropriação dos vazios não é simples e gera desdobramentos. Revitalizados, esses espaços acabam por expulsar as atividades e territórios populares que nele se estabeleceram, pressionando ainda mais a precarização da cidade. “Cada porção do centro ‘enobrecida' é mais uma favela ou pedaço de periferia precária que se forma”, finaliza Rolnik.